terça-feira, 12 de agosto de 2014

“O amor nos tempos do capitalismo”, de Eva Illouz ou Subsídios para dramaturgos e escritores acerca das relações dramáticas na contemporaneidade




            Ao definirmos como contemporâneo o teatro que, depois da Segunda Guerra, tem buscado afastar-se com maior ou menor intensidade da forma dramática convencional – e o Teatro do Absurdo pode ser considerado um ponto inaugural da nova fase –,  abarcamos um número incontável de manifestações as mais diversas, convivendo pacificamente ou não com espetáculos que conservam alguns dos princípios fundamentais do drama.

            O citado afastamento da forma dramática pode se dar por meio da fragmentação, por exemplo, da descontinuidade cronológica e consequentes diluição ou embaralhamento do fluxo causal, bem como da indeterminação de tempo e lugar, entre tantas outras possibilidades de subversão. Embora os personagens também tenham se reconfigurado nesse período, parece ser no terreno das relações que o teatro contemporâneo tem se mantido mais próximo do drama. Passados tantos séculos desde Aristóteles, a premissa de que a cena é espaço de ações humanas continua válida. Tanto que Jean-Pierre Sarrazac, um dos maiores pensadores da contemporaneidade teatral, pondera que nem todos os componentes dramáticos precisam ser negados, mas transformados de acordo com a própria evolução dos tempos.

            É possível observar em grande parte dos textos mais recentes – à exceção de Heiner Müller e Sarah Kane, para ficarmos em dois autores mais conhecidos – que as relações entre personagens continua “levando a ação para a frente”, ou seja, se mantém como motor da situação figurada ou transfigurada na cena. A peça transgride a forma dramática (às vezes bem pouco) em sua estrutura, mas se mantém absolutamente fiel às relações interpessoais e aos conflitos, tão caros ao drama. Assim, é comum vermos crises amorosas, turbulências entre pais e filhos e amizades em cheque, por exemplo, ilustradas com projeção de filmes e legendas ou editadas como cinema, encenadas em lugares nada convencionais, “performatizadas” com música e dança e assim por diante.

            No entanto, quem são esses “personagens contemporâneos” em suas crises interpessoais? Em que fontes podem dramaturgos, encenadores e atores buscar referências para a criação desses seres? Uma obra estimulante nesse sentido é “O amor nos tempos do capitalismo”, da socióloga Eva Illouz. O volume, publicado pela editora Zahar, reúne três conferências que abordam o tema do afeto e as transformações no modo de encará-lo e lidar com ele, no contexto do capitalismo.

            No primeiro capítulo, a autora aborda o advento da psicanálise e investiga o modo como as ideias freudianas invadiram aos poucos os mundos corporativo e social, transformando as relações. Afirma ainda que o feminismo, fortalecendo-se com os postulados da psicologia, foi igualmente responsável pelas transformações que vieram a ocorrer tanto na esfera privada quanto na pública.

            O tema é aprofundado no capítulo dois, em que Illouz dirige o olhar para o indivíduo e seu convívio amoroso e familiar, analisa as estratégias de autorrealização e manutenção dos laços, mantidas, muitas vezes, graças a interesses materiais e ideais de certos grupos (profissionais, clínicas, indústria farmacêutica, programas de TV, etc).

            Finalmente, no último trecho, intitulado sugestivamente de “Redes românticas”, o foco é o campo do envolvimento virtual entre as pessoas, da mercantilização e da textualização do afeto (sua transformação em linguagem pura), capazes de anular o corpo, pressuposto fundamental para o sentimento amoroso.

            A citação abaixo dá uma ideia do quanto os estudos de Eva Illouz podem alimentar a criação de personagens e relações interpessoais:

            ...”a cultura do consumo e a indústria da moda desempenharam um papel importante, ao acentuarem o manejo deliberado do eu e a criação de impressões programadas para agradar e seduzir outras pessoas. Isso marcou uma mudança significativa em relação ao eu do século XIX, que era menos fragmentado e menos dado a manipulações dependentes do contexto, porque era moldado por uma ideia holística do caráter”. p. 115

            Para a autora, no chamado “capitalismo afetivo”, afeto e economia interferem mutuamente, moldando-se um ao outro, a ponto da vida afetiva seguir “a lógica das relações econômicas e da troca”. E quando a linguagem da psicologia se entrelaça aos repertórios do mercado, “os dois oferecem novas técnicas e sentido para cunhar novas formas de sociabilidade” – farto material de pesquisa para o teatro contemporâneo.


publicado anteriormente em
http://papelferepedra.blogspot.com.br



           

           




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