quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

"Mata teu pai", de Grace Passô - Prefácio




Para a maioria de nós, ainda custará um bocado até que esses últimos tempos sejam devidamente assimilados e compreendidos. Cabe à Arte, antes mesmo de possíveis análises históricas e sociológicas, fornecer instrumentos para que essa compreensão se dê de modo profundo.

Ao retomar o mito de Medeia e trazê-lo novamente à cena, Grace Passô o faz ainda atolada nos acontecimentos recentes, daí a perplexidade sentida em cada ação – e o enunciado aqui, como em outros textos da autora é pura ação –, em cada movimento. Esses, por sua vez, lançam sobre nós leitores/espectadores uma série de instantâneos com que podemos, cada um a seu modo e com suas referências, compor um quadro particular do nosso tempo.

Grace, ao longo de sua trajetória, reveza-se como atriz, diretora e dramaturga, com qualidade e apuro cada vez maiores. Foi uma honra para mim prefaciar seu texto mais recente, levado à cena sob direção de Inez Vianna e com um elenco encabeçado por Débora Lamm. *


Débora Lamm protagoniza "Mata teu pai"
(Foto: Elisa Mendes)




PREFÁCIO

MEDEIA MMXVI


Houve um tempo em que as histórias eram transmitidas oralmente, à volta do fogo. Ombro a ombro, olhos nos olhos, vozes e ouvidos em sintonia - modos de explicar e de compreender a existência das concretudes e de outros fenômenos, do que se passava dentro e fora de si. Em momentos determinados, o que era mito ganhava presença e força no rito, vivenciado coletivamente com celebrações, sacrifícios e festa.

Fixadas na literatura, no teatro, nas artes plásticas, aquelas narrativas e trajetórias míticas conquistaram as prateleiras e as telas de cinema. De certa forma domesticadas, perderam em maleabilidade o que ganharam em portabilidade e alcance. Suas funções, porém, permanecem e uma das principais é atuar como referência, especialmente em situações de mudança ou de crise.

O modo com que deusas e deuses, heroínas e heróis enfrentam os desafios, desproporcionais à medida humana, presta-se a inspirar o nosso próprio enfrentamento. A partir de seus exemplos ancestrais, podemos identificar situações e comportamentos que são arquetípicos, ou seja, modelares da experiência humana tais como a paixão, a lealdade, o desejo de poder, a traição e a vingança, entre outros. E ao identificar, adquirimos maior capacidade de compreender e de agir, porque nos posicionamos na esteira do processo e não apartados dele. É como se nada do que é humano pudesse escapar do farol ou da mira do mito.

Assim, Mata Teu Pai, a peça de Grace Passô ora publicada, pode ser vista como resultante da busca empreendida pela autora por compreender, ao menos em parte, o contexto em que vivemos à luz do mito de Medeia. Não a protagonista “civilizada” e loquaz dos trágicos ou dos modernos, mas uma anterior, a Medeia Grande-Mãe ctônica, febril, senhora da vida e da morte; meio-irmã de Gaia, da nórdica deusa Freia, de Lilith, a lua escura. Fêmea, fértil, generosa, igualmente impiedosa e sombria, porém. É essa entidade primitiva que Grace conjura para nos auxiliar no enfrentamento do presente.

O conhecimento científico e a racionalidade fracassaram – grassam o machismo e a violência, a intolerância mata um pouco mais a cada dia. Guerras de conquista e alargamento de fronteiras desterram, a maximização dos lucros maximiza a miséria, inunda cidades com água e lama. E o poder constituído pelo voto arroga-se todos os direitos, tornando impunes a traição e a deslealdade, (in)justificadas por uma ética de ocasião. Em suma, o patriarcado agoniza, mas ainda assim prevalece. A quem recorrer se não a Medeia, vingadora, indomável?

Trazida de outros tempos à cena, sua energia é diversa, não se encaixa no discurso lógico, masculino, nem nos limites da quarta parede. Sua fala é lava, jorro incandescente e não cabe a ela adequar-se às nossas convenções, ao contrário: necessário é o nosso esforço em abandoná-las e a tudo o mais que represente a velha ordem falida. Precisamos ter coragem. A Deusa atendeu ao chamado e se apresenta em sua face mais terrível. Não poderia ser de outra forma se queremos que uma nova ordem se estabeleça.

Seu poder se faz sentir também na dramaturgia. Dessa vez, a poesia de Grace Passô faz voo livre, ora nas alturas da razão, ora nas profundezas do inconsciente e da libido. Peça-partitura a romper com o patriarcado da forma dramática convencional, Mata Teu Pai é constituída de onze movimentos livres, cada um com atmosfera própria, staccatos, ritornelos e didascálias que, em sua maioria, trazem indicações sonoras.

Tal é a autonomia poética do texto, que ele sugere uma intensa parceria criativa de intérpretes, direção e público para que se efetive como dramaturgia, para que o mito seja revivificado. Não mais à volta do fogo, mas com o incêndio à nossa volta, no rito coletivo do teatro.


Adélia Nicolete
Janeiro de 2017


* PASSÔ, Grace.  Mata teu pai.   Rio de Janeiro: Cobogó, 2017.




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