No final de 2017, tive o prazer de participar da banca de Karla Santori na finalização de sua Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação. O curso, sob a coordenação da Profª Drª. Nina Veiga teve lugar n'A Casa Tombada em São Paulo e os trabalhos finais resultaram em uma coleção que já é referência no assunto. Para minha alegria, Karla convidou-me também a prefaciar o seu texto, linhas que compartilho logo abaixo.
Encontros notáveis
“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!”
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!”
(Mário de Andrade)
Dentre as tantas interpretações de Trezentos e cincoenta - o
famoso poema de Mario de Andrade – ao menos uma delas conversa de perto com o
livro de Karla Santori ora publicado: a busca incessante de si mesmo por parte
do narrador. Ao se deparar com uma das faces possíveis, outras são despertadas,
dentro de si ou a partir do contato com o Outro, seja próximo, seja no Piauí ou
alhures. Talvez o mais importante não seja a descoberta e sim a própria busca.
A partir da criação de uma personagem – Clara
(um anagrama de Karla) – a autora empreende uma retrospectiva de sua trajetória
sob o ponto de vista das artes-manuais. Numa expedição arqueológica e
marcadamente poética, sai em busca de alguns encontros significativos, que
muito provavelmente forjaram-na como artista, e dos objetos que os
testemunharam. Na medida em que compartilha conosco cada um dos encontros,
temos reveladas, por consequência, novas faces da narradora.
O recurso de utilizar-se de uma personagem alter-ego
e de um narrador onisciente mostra-se libertador: com ele Karla pode tomar-se como
matéria de estudo a fim de se reconhecer, se afirmar e saltar para novas buscas,
afinal o livro é resultante da Pós-Graduação em Artes-Manuais para a Educação e
espera-se que seja o primeiro de muitos. Além de libertador, o distanciamento
narrativo permite que nós, leitoras e leitores, entremos em contato com as
ações, com o que a personagem fala, pensa, intui, sonha, questiona e, se não
bastasse, com algumas análises e conclusões.
“Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!”
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!”
O texto de palavras tecido pela autora ao longo
de cada capítulo, propõe os encontros como urdidura em que será tramada uma
variedade digna de nota: lembranças e relatos; questões, reflexões e sensações;
poemas, sonhos, intuições; imagens, rituais, cores, cheiros e sabores e, não
bastasse, projetos para o futuro. Em sua aventura pela linguagem, utiliza-se,
inclusive, de negrito e diferentes tipos de fontes e suas dimensões. Cada
capítulo é uma peça singular, tem unidade, tem força, é um tecido firme e único.
E do que trata cada capítulo? Numa primeira
análise, de encontros significativos em torno das artes-manuais. A autora
pontua sua trajetória de vida sob a ótica do fazer artístico e nós formamos,
ponto por ponto, um quadro de quem é a Karla e de como se deu o contato com as
diversas técnicas, por exemplo. Poderia ser isso e a tarefa já estaria
cumprida. Porém, ela não se limita a um relatório ou um depoimento. Eu diria
que a Antroposofia transparece no seu trabalho na medida em que a trajetória
não é abordada tão somente do ponto de vista factual, mas da totalidade que ela
abarca, suas implicações mais profundas.
O livro forma, pois, um conjunto harmonioso em função de mais um expediente: os
entremeios poéticos – feito aqueles entremeios rendados que servem para decorar
uma vestimenta ou um trabalho bordado, mas também para arejar e dar destaque a
cada unidade que agrega.
“Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.”
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.”
Falemos, finalmente, dos encontros que dão título ao livro. Conforme
comentamos, são lembranças que vêm à tona, suscitadas por uma indagação do
presente: quem e o que me formou e me forma como artista? Trata-se de um olhar atento
e demorado para o que se viveu em fluxo a fim de se garimpar, de se trazer à
luz algo de mais impressionante e compartilhá-lo. O que não for lembrado (a
grande escuridão que suporta os lampejos da memória) presta-se a condensar as
experiências realmente significativas.
Tais encontros preciosos, ao contrário do que possamos pensar, não se
dão necessariamente com pessoas célebres. Sua importância é identificada a
partir do nosso olhar de buscadoras e buscadores. O olhar é que atribui a essas
pessoas um sentido capaz de completar, preencher, dar sentido à nossa empresa.
E vice-versa: o encontro conosco pode igualmente justificar em parte a
existência dessas pessoas. Artes-manuais e seus encontros é repleto de
exemplos.
Clara tem dificuldade de se relacionar com uma colega de trabalho e,
embora tente reconsiderar a aversão, parece que a antipatia é recíproca.
Quando desiste de forçar uma aproximação e concentra-se em suas próprias
atividades, leva para o escritório um trabalho de ponto-cruz. É o que basta
para gerar a empatia da colega, que olha para ela como a uma igual, pois também
aprecia as artes-manuais. Ambas iniciam uma nova relação, que cresce
fortalecida, baseada no compartilhamento de saberes e fazeres que subjazem ao
cotidiano profissional e se instalam na esfera do espírito.
Em outras oportunidades, a protagonista visita uma loja ou se hospeda
numa pousada e aprecia o trabalho delicado das artistas-anfitriãs. Essas, por
sua vez, encontram sentido em suas criações por meio do olhar da viajante e de
seu testemunho. Encontros fortuitos, porém notáveis. Clara vive uma situação
parecida com a dessas artistas quando traz uma menina para casa depois de um
acidente automobilístico. A pequena admira as caixas encapadas com esmero – por um momento o
acidente e a separação da mãe ficam em suspenso em seu coração. Fica fascinada
por uma delas em especial e Clara identifica naquele olhar uma valorização
inigualável de seu trabalho, tanto que presenteia a menina com a caixinha
quando ela parte com o pai.
Nesses quatro exemplos, é pelo olhar do Outro que se atribui um sentido
e um valor ao próprio fazer artístico. Um valor incomensurável de
reconhecimento do talento e do esforço empreendidos.
As leitoras e os leitores, por sua vez, ao encontrarem o livro de Karla
e suas narrativas, poderão, quem sabe, deparar-se consigo mesmos ao rememorarem
a própria trajetória. Podem, além disso, sentir-se estimulados a partir pelo
mundo em busca de encontros notáveis. Um dia, certamente, toparão consigo
mesmos e toda a experiência vivida nos Encontros constituirá o abrigo da alma.
Adélia Nicolete
SANTORI, Karla. Artes-manuais e seus encontros. Org. de Ana Lygia Vieira Schil da Veiga. São Paulo: Círculo das Artes, 2018. (Coleção ARTES-MANUAIS PARA A EDUCAÇÃO: aprendizagem e processos de singularização; vol. 1)
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