sexta-feira, 30 de março de 2018

Dramaturgia impressa e expressa



Publicação independente das peças do
Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras
(Foto: Dino Santos)

A publicação de dramaturgia brasileira ganhou impulso em décadas recentes. Graças à conjunção de diversos fatores, é possível ler algumas peças enquanto estão em cartaz, por exemplo, coisa inimaginável até há pouco tempo.

Os recursos tecnológicos talvez sejam o principal motivo desse crescimento. Ficou muito mais fácil escrever, formatar, editar, enviar e imprimir os textos. Computadores, internet, impressoras modernas e simples de operar, câmeras digitais, vendas online, etc permitiram diminuir o tempo e facilitar a mão de obra, o que fez aumentar vertiginosamente o número de editoras, muitas delas especializadas em nichos como arte, poesia, novos autores e assim por diante. Sem escritores famosos que garantam as vendas, mas por outro lado, sem o peso das grandes estruturas, tais editoras têm mais liberdade com relação a temas e formatos e chegam a fazer diferença justamente por se colocarem fora do padrão. A maioria delas subsiste com o investimento dos próprios autores, que pagam para ter seus livros publicados. E esse é mais um fator a condicionar o aumento de peças em circulação.

As leis de incentivo à cultura em níveis federal, estadual e municipal, além de fomentarem a criação de espetáculos e de textos, responderam até o momento por grande parte da verba para a publicação de dramaturgia. Quando não, autores e grupos partem em busca de patrocinadores e apoiadores, sejam eles empresas ou pessoas físicas. Nesse último caso, o surgimento de mecanismos de cotização via internet – as famosas vaquinhas virtuais – permite a colaboração com quantias variáveis e garante “recompensas” aos apoiadores, muitas vezes na forma do próprio livro.

É importante lembrar que todo esse movimento começou a ganhar força por aqui nos anos 1990 com os coletivos de criação como uma das reações ao neoliberalismo. Em linhas gerais, para se escapar à ditadura das gravadoras, editoras, emissoras, rádios, galerias, dos produtores e marchands que dominavam o chamado “mercado da arte” e ditavam o que merecia ou não ser veiculado, formaram-se os coletivos de artistas nas mais diversas áreas. Responsáveis por criar, produzir, comercializar e comunicar seus trabalhos, inúmeros artistas assumiram o processo como um todo e garantiram a veiculação de suas obras e independência tanto conceitual quanto formal e comercial. Daí o aumento das editoras e gravadoras em diversos estados brasileiros, sempre à margem do mainstream, a tornar possível o acesso de um maior número de iniciantes na literatura e na música, por exemplo.

Sabemos que antes disso também se publicava dramaturgia. Nos anos 1970, para não ir muito longe, ao ver seus textos censurados pela ditadura, Plínio Marcos decidiu que a partir dali eles seriam conhecidos pelo público e para isso recorreu a impressões convencionais ou artesanais, vendidas por ele mesmo em bares, restaurantes, portas de teatro, feiras literárias e onde mais encontrasse oportunidade. 


Plínio Marcos vende suas peças
na 8ª Bienal do Livro de São Paulo (1984)
(Foto: Eliana Assumpção - FSP) 

Se à época de Plínio Marcos o público de teatro era potencialmente menor e ele contava com seu carisma a garantir as vendas também a quem não frequentava as salas de espetáculo, hoje os leitores de dramaturgia são em maior número. O volume de produções aumentou, mas não só. Nas últimas décadas cresceu vertiginosamente a oferta de cursos de teatro em todos os níveis, ou seja, o fazer teatral tornou-se acessível a grande parte da população, o que aponta mais um fator de interesse pela leitura e o estudo de peças teatrais. **

O teatro é linguagem essencialmente coletiva e, por isso, efêmera. A publicação das peças garante não só uma relativa “fixação” e consequente retomada de parte da experiência de fruição, como também a possibilidade de criar novas encenações ou "encenações subjetivas", via leitura. Se a dramaturgia só se realiza enquanto teatro ao ser colocada em cena e ganhar uma audiência, tem seu lugar na literatura enquanto registro verbal de um tempo, de um pensamento, de uma criação individual ou de grupo, a ser conjugado à imaginação do leitor.


Lançamento do livro com a dramaturgia do
Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras, sob minha responsabilidade autoral.
Na foto de Cecília Camargo, as atrizes do grupo e um dos diretores.
Camila Shunyata, Roberta Marcolin Garcia,  Vivian Darini,
Fernanda Henrique, Sérgio Pires e Adélia Nicolete

A publicação de dramaturgia e a apresentação de espetáculos no momento em que vive o país, constituem vitória contra as trevas e a ignorância. No meu caso e do Grupo Teatral Pontos de Fiandeiras ao qual pertenço, representa fixar em livro a existência de mulheres que sempre estiveram à margem, sem direito a figurar nos livros de História. Nossas personagens são mulheres como nós: donas de casa, mães, filhas, estudantes, professoras, operárias, atrizes, líderes comunitárias, mulheres do subúrbio, enfim, como é o caso do nosso ABC paulista. O teatro reconhece sua importância nas transformações sociais e dá a elas lugar de destaque. Que o digam Tchekov, Brecht, Jorge Andrade, Plínio Marcos e outros mais.

Adélia Nicolete e Dalila Teles Veras, poeta, editora e livreira
durante o lançamento de Ponto Segredo e Ponto Corrente
no Sindicato dos Bancários do ABC
(Foto: Cecília Camargo)

Daí festejarmos o lançamento de Ponto Segredo e Ponto Corrente - presença feminina na dramaturgia do ABC paulista, no último dia 18 de março, enquanto mantemos os dois espetáculos em circulação - dramaturgia expressa, no calor da cena. A publicação de dois mil exemplares em forma de folheto foi patrocinada pelo Sindicato dos Bancários do ABC e pela APCEF e atende ao nosso desejo de uma estética próxima à da contracultura, bem como de acessibilidade do texto via preços populares - o valor arrecadado financiará uma nova publicação e a apresentação gratuita de um dos espetáculos em escola pública.

Por ocasião do lançamento, pudemos fazer a retrospectiva das ações e realizações do Grupo e homenagear a militância feminina na pessoa da vereadora carioca Marielle Franco, há pouco eliminada da frente de batalha.

Marielle Franco
(Foto: internet)

Que por meio de nossa arte, possamos travar as lutas necessárias e estimular o nascimento de muitas, muitas, muitas militantes mais.


Adélia Nicolete 



** Infelizmente, tem-se notado desde o impeachment da presidente Dilma Roussef em 2017 um desmonte gradativo da cultura em nosso país. Artistas e produtores culturais foram os que mais acentuadamente se colocaram contra o chamado “golpe da direita”, de modo que as retaliações se fizeram sentir sob a forma de cancelamento de editais e programas, fechamento de teatros e casas de cultura, sucateamento de escolas, cortes de verbas e muito mais. Tais medidas representam um retrocesso incomensurável no que se refere às práticas artísticas e à própria cidadania.









2 comentários:

  1. Adélia Nicolete, querida, o post redimensiona a importância da luta travada pelxs fazedores de cultura na busca pela implementação de um olhar para a cultura que seja de igual importância quanto as demais demandas de nossa sociedade. Que continuemos nos engajando, cada vez mais, nessa ação em coletividade e criando as brechas possíveis e impossíveis para fortalecer o nosso ser cultural. Evoé!

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    1. Roberta, obrigada pela visita e pelo comentário. Que nesse ano tão importante possamos participar ativamente dos debates por meio de nosso trabalho. A força vem daí. Evoé!

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