terça-feira, 15 de agosto de 2017

A escrita conjura


Leonilson - "Empty man" - 1991
bordado/escrita em preto sobre "red work" familiar
Para Nina Veiga
e todas as autoras do livro
"Artes-manuais: narrativas e memórias afetivas" 


Puxar o fio da memória, alinhavar uma ideia, tecer um raciocínio, arrematar o assunto. Quanto das manualidades habitam o nosso imaginário mesmo se nunca pregamos sequer um botão? Quanto dessas práticas ancestrais escorrem pela nossa língua? “O que você está tramando, menino? Não me enrede na sua conversa! Você não dá ponto sem nó!” Quanto renasce em nossas canções? “É a sua vida que eu quero bordar na minha, como se eu fosse o pano e você fosse a linha?”
Pois foi esse o ponto inicial para a elaboração do Ateliê de Memórias e Escrita Criativa que ministrei na Pós Graduação em Artes-Manuais para a Educação em setembro de 2016. Sempre me fascinou a estreita relação entre a escrita e as manualidades, em especial aquelas ligadas à fiação. A própria palavra texto remete a têxtil, ou seja, tecido. As novelas, algumas delas capazes de parar todo um país, derivam de novelo, aquele fio que se desenrola, no caso da televisão, dia após dia, cheio de nós a serem desatados. Por falar nisso, as boas histórias têm e desenlace e se não for possível narrá-las numa enfiada só, é preciso saber cortá-las no momento certo se quisermos que o ouvinte anseie por retomar a trama.
Do mesmo modo, fascinantes são as narrativas ocultas nas manualidades. A moça que bordava o enxoval fazia conjuras de amor: a letra inicial de seu nome enlaçava-se à do noivo, ambas protegidas por uma guirlanda de flores a propiciar paixão e fertilidade nas roupas de cama. Quantas expectativas ao tecer ou bordar o enxoval da criança esperada? Na escolha dos motivos, dos pontos e das cores o desejo de saúde e sorte, a prece. Novas conjuras. E o que nos diz a mortalha, enfim? Costurada ponto a ponto, pranto a pranto, escrita de saudade e de dor.
Manualidade ancestral é também o livro que agora temos em mãos. Sua origem são peças afetivas garimpadas pelas alunas do curso e trazidas aos olhos e aos ouvidos do grupo. O que tem de especial uma toalha de mesa bordada? O que me contam uma touca, um babador ou um vestido de crochê? A peça decorativa ou utilitária, que segredos ela guarda? Quem teceu? Quem ofertou? Em que momento e por quê?
A preciosa história de cada peça foi narrada a uma colega que, com o cuidado de quem fia a seda, se apropriou do que ouviu e transformou em texto – tecido de letras e de sons. Depois de escritas, as histórias foram lidas para todo o grupo de modo a habitar cada uma das participantes e a formar, a partir delas, novas tramas. A seguir,  um grupo de diligentes editores tratou de tecer uma nova camada narrativa ao dispor graficamente textos e imagens no papel. Com isso, o livro passa a ser uma nova peça a reunir todas as outras, colcha de retalhos, urdidura em que os leitores tecerão suas próprias narrativas e memórias num enredo sem fim.
As memórias ligadas às manualidades unem os fios do presente e do passado a fim de fortalecer os laços com a ancestralidade. Ao reavivarmos nossa relação com esses fazeres ancestrais invocamos as forças que os produziram e nos apropriamos delas para seguir adiante. Que o texto escrito que daí tecemos possa conjurar, por sua vez, a volta das manualidades e todas as suas narrativas singulares ao nosso cotidiano.

Adélia Nicolete

Prefácio do livro "Artes-manuais: narrativas e memórias afetivas" a ser lançado no dia 11 de novembro próximo.

6 comentários:

  1. Adélia que iguaria para os olhos, para a mente e para o paladar de letras e palavras! Como sempre a escrita criativa traz ao centro o ato mais evolucionário que conheço (e sim é sem o R) Criar é fonte de sabedoria e de fazer alma. Sem isso estacionamos na espera pausada da vida que é até intensa para apreciar a beleza da paisagem, mas só a ação define a meta caminhada. Que delícia esse prefaciar. Que gostoso esse compartilhar! Que venham outros! abraços à todos os amores afetos e criadores envolvidos!

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    1. Obrigada, Elaine, pela visita e pelo comentário, sempre aguardados.
      Foi uma experiência intensa e gratificante para todas nós. Seleção de materiais, narrativas orais e escritas. Um rememorar que é também enredar e tramar com leitoras e leitores.
      Um beijão pra ti, querida, que é também da tribo das artes-manuais como escrita e da escrita como arte-manual.

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  2. Quantas delicadezas tecidas aqui e alhures! Que maravilha isso de puxar fios da memória, "os fazeres ancestrais invocamos as forças que os produziram e nos apropriamos delas para seguir adiante". Ficarei na fila à espera do livro que só reforçará o quanto tenho na memória matéria de criação. Parabéns, Adélia e obrigada por compartilhar saberes e delicadezas. Sempre muito bom passar por aqui e beber dessa fonte criativa.

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    1. Obrigada pela visita e pelas palavras, Dalila. Nunca se falou tanto em Memória e nunca vivemos um tempo de tanta descartabilidade, provisoriedade. Sigamos a lidar com os paradoxos e a escolher o nosso lado na batalha. Abraço e gratidão.

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  3. Adelia querida... você escreve sempre com a delicadeza dos que cultivam cada detalhe da vida. Cada pequeno momento (de tempo nunca de intensidade!), cada frescor renovado. Ler as coisas que você escreve enche meu coração de outras coisas boas e me estimula (sempre) a seguir em frente, sem os receios e medos que acometem o cotidiano. No meio de tanta barbárie que tem acontecido pelo mundo, o exercício da delicadeza, do tear de palavras e sensações, da tecitura de relações sinceras e duradouras, isso nunca se fez tão necessário como agora.
    Saúdo você, minha musa inspiradora!
    Bj grande!!!

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    1. Saúdo igualmente a ti, meu querido Wallace. Anunciar Dylan é também um modo de cultivar a delicadeza. Que bom que curtiu o prefácio. O trabalho com essa turma foi gratificante e inspirador. Um abração pra ti! Obrigada pelo musa. :)

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