segunda-feira, 3 de agosto de 2015

A dramaturgia do descarte - Dia: Beacon - John Chamberlain - II




John Chamberlain - "Pigmeat's E   Bluesong" - 1981
(Foto: Adélia Nicolete)


Para Assis Benevenuto,
pelas discussões afins


Em um de seus poemas, Manoel de Barros constata: “O que é bom para o lixo é bom  para poesia”. Quando tomamos contato ao vivo com as esculturas de John Chamberlain expostas no museu Dia: Beacon, percebemos os olhos, o espírito e as mãos de poeta que moldaram cada uma delas a partir da sucata. Olhos capazes de identificar em um desmanche de carros ou em um depósito de ferro velho peças com potencial estético; espírito capaz de imaginar tanto uma composição desses materiais em bruto, quanto de vislumbrar alterações ou intervenções, e mãos, dele ou de seus auxiliares, sensíveis o bastante para concretizar as ideias. 

Diante disso, é praticamente impossível não pensar em dramaturgia.


John Chamberlain - Flufft - 1977
(Foto: Adélia Nicolete)


Para o observador incauto, cada trabalho de Chamberlain resume-se a um amontoado de peças de origens diversas. Pode sentir-se atraído pelas cores, pela identificação de uma marca ou modelo de carro aqui e ali, mas é só isso. Na maioria das vezes não passa de um olhar superficial, como aquele que pousamos sobre quase tudo em nosso dia-a-dia graças à necessidade de cumprir, de “ticar” automaticamente a superoferta de imagens e textos a que estamos submetidos.



John Chamberlain - "Two dark ladies" - 1977
(Foto: Adélia Nicolete)



John Chamberlain - "Two dark ladies" (outro ângulo) - 1977
(Foto: Adélia Nicolete)

John Chamberlain - "Swift Wi T" - 1979
(Foto: Adélia Nicolete)

No entanto, um visitante que estiver disposto a demorar-se um pouco mais no entorno da peça, disposto a moldar seu corpo para observá-la melhor e descobrir-lhe os segredos, a esse será servido um poema.



John Chamberlain - "Royal Vector" - 1967
(Foto: Adélia Nicolete)


John Chamberlain - "Royal Vector" (outro ângulo)  - 1967
(Foto: Adélia Nicolete)

As esculturas-poema de John Chamberlain expõem a produção e o consumo excessivos e a permanência incômoda do resto – mesmo que disfarçado de arte. Falam da monumentalidade efêmera, da delicadeza do aço e de sua vontade de transcender em renda, filigrana, ave. Como em um Franskenstein, força-se a dureza do material até que adquira bons modos, movimentos arredondados, até que alcance o sublime e ganhe, assim, a nossa aceitação. 

A maioria dos trabalhos expostos despertou-me a compaixão – pelo material em si e seu esforço de aceitação; sua entrega, ainda que resistente, ao fogo, à prensa, à lâmina. Compaixão pelo artista, por uma carreira dedicada a dar sentido ao desprezível, a compensar perante a natureza o monturo de toda uma civilização.




John Chamberlain - "Coup d'soup" - 1980
(Foto: Adélia Nicolete)



Quantos descartes temos disponíveis para o ofício da dramaturgia? Os da ética e da filosofia. Os da História e da humanidade. Quantos e quais são os resíduos de uma sociedade da pressa, do hedonismo, da competição e da individualidade? Os descartes do texto verbal, o vazio e o provisório das trocas dialógicas contemporâneas. A descartabilidade da linguagem – o que é durável em uma arte que prima pelo momento presente do espetáculo? O que perdura no corpo/memória do espectador? O que ele pode compor com outras materialidades ou imaterialidades a fim de realizar a si próprio como obra, mesmo que provisória?

O quanto há de escultórico no trabalho do dramaturgo? Com que elementos opera? Permanecemos presos a estruturas já fixadas, que capturam de imediato a cumplicidade habitual do público ou arriscamo-nos a explorar os desmanches e depósitos de ferro-velho à cata de materiais à espera de transcendência poética, como conclama Manoel de Barros?

“As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões 

da poesia

“Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

(...)

“As coisas jogadas fora
têm grande importância 
- como um homem jogado fora"


Esse assunto não é novidade, mas por aqui é. O descarte e a tridimensionalidade da dramaturgia têm me (i)mobilizado, agora não só como pesquisadora/teórica. Ânsia por transcender.


(Mais obras de Chamberlain e maiores informações sobre o museu Dia: Beacon, consultar as duas postagens anteriores.)


Adélia Nicolete





4 comentários:

  1. Que incrível, Adélia!
    Suas provocações chegam causam um aperto em meu peito.
    Obrigado

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  2. São as obras de Chamberlain e a poesia de Manoel de Barros, Bruno. Não se iluda. :)
    Um abraço pra ti, querido. Eu é que agradeço.

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  3. Olha! Adélia, fui ler outro post que tinha 3 outros posts linkados. Então fui pulando atravessando através dos elos e pah. Cheguei aqui. Eu não tenho certeza se tinha visto esse post. Acho que me passou... Mas mesmo com o delay de quase 5 anos, puxa!, o pensamento dramatúrgico do descarte é muito forte. Salve.

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    1. Obrigada pela visita pula-pula, Assis! rsrs Viu só? Dediquei a você a postagem e cinco anos depois ela ainda pulsa. Foi bem na época em que você me provocava com o "Ser crânio". Com o Chamberlain parece que algumas coisas fizeram sentido. Eu acho... Um beijo, querido!

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