Raimundo Borges Falcão com a fantasia "Tubarão Azul" - 2000 (Foto: Dimitri Ganzelevitch) |
Na sequência de nossas ponderações acerca do
descarte nas artes visuais e na dramaturgia, apresentamos hoje o baiano
Raimundo Borges Falcão, com nascimento provável no final dos anos 1940 e
praticamente desconhecido entre nós.
Analfabeto,
até onde se sabe, Raimundo morava sozinho em um barraco de madeira sem janelas,
na periferia de Salvador. As sucatas por ele coletadas lotavam sua moradia do
chão ao teto e eram utilizadas com uma única finalidade: a confecção de fantasias
para o carnaval. Apenas uma vez por ano, aquele homem aparentemente banal destacava-se
por força de sua arte. Atravessava o centro histórico da cidade em seus patins artesanais,
exibindo orgulhosamente uma fantasia em que, por exemplo,
“bonecas de plástico tornam-se sereias
brilhantes em um exótico chapéu: esculturas de peixes envolvidos em papel
alumínio dividem espaço com um cavalo marinho dourado e um polvo cintilante; caranguejos
cravejados de lantejoulas estendem suas garras; capa, saia rodada e pulseiras
que se parecem com algo pego na rede de pesca de um mágico; e os cetros que
lembram os de Orixás, cujas
representações em vestes brilhantes seguram bastões e espelhos que simbolizam
seus poderes.” *
Raimundo Borges Falcão - Sem título - 1999 Adereço de cabeça de uma fantasia composta de onze partes |
À parte
dos cordões, blocos e trios elétricos que invadem a cidade durante os festejos,
Raimundo preferia realizar uma performance solo, movendo-se em um ritmo
particular. Por um lado, a multidão. Por outro, o homem único – um excêntrico
em descompasso com a maioria.
Embora
suas fantasias tivessem um significado claro apenas para ele, ainda assim podia-se
identificar nelas profundas raízes na cultura afro-brasileira. Para Beate
Echols, colecionadora de sua obra e estudiosa de seus trabalhos, as criações de
Raimundo Borges Falcão parecem um altar a Yemanjá, a “mãe das águas”, venerada no Brasil. São verdadeiras esculturas, onde os objetos de
descarte são como oferendas: “seus trabalhos, como de outros tantos criadores
da diáspora afro-atlântica, sugerem uma memória coletiva em montes de sucata,
que em grande parte da África está nos túmulos ou portais para o reino dos
antepassados.” *
Nunca tinha ouvido falar desse artista até uma visita à exposição When the curtain nevers comes down: performance art and the alter ego (Quando as cortinas nunca baixam: a arte da performance e o alter ego) , no American Folk Art Museum, de Nova York. A referência brasileira de trabalho com descartes era Arthur Bispo do Rosário – também presente na mostra. Ali pude encontrar não só os dois compatriotas, como diversos outros criadores do mundo todo, que, desde o século 19, dedicaram-se ao reaproveitamento de resíduos em seu trabalho artístico e de reordenação do mundo.
Foram homens e mulheres diagnosticados com algum tipo de distúrbio psicológico, internos em manicômios ou simplesmente vivendo à margem, como foi o caso de Rock N Roll, citado na postagem anterior, ou o de Raimundo Borges Falcão, entre outros. O fato é que todos produziram obras de inegável valor estético e, se não bastasse, exibiam-nas em performances particulares ou públicas.
Raimundo Borges Falcão - Sem título - 1999 Colar de uma fantasia composta de onze partes |
Há
quem defina esse tipo de trabalho como uma tentativa de organização das
próprias estruturas internas que, de outra forma, entrariam em colapso e
impediriam a sobrevivência dessas criaturas. Em todo caso, vale indagar se o
processo de criação de pessoas tidas como “normais” também não passaria por
essa mesma tentativa.
Numa
sociedade como a nossa, que prima pelo desejo/consumo em todos os
seus níveis, o volume de descarte físico e simbólico é incomensurável. São poucos
os que conseguem sair incólumes do bombardeio diário de estímulos, cobranças,
pressões externos e internos de que somos alvo. A criação e a fruição
artísticas, a meu ver, apresentam-se como uma espécie de bunker, um abrigo para que se mantenha a sanidade mínima em tempos
de guerra como os nossos.
Nesse sentido,
o trabalho com o lixo contemporâneo é não só uma questão de criação estética,
mas de sobrevivência pessoal e social, pois passa pela sua identificação, compreensão,
articulação e “devolução” à sociedade como uma espécie de aviso ou de tradução (ainda
que, por vezes, enigmática), como uma saída, ou como uma placa a indicar a
direção do bunker mais próximo.
Adélia Nicolete
* ECHOLS,
Beate. Raimundo Borges Falcão. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down : performance art and the alter
ego. New York: American Folk Art Museum, 2015. p. 43 (Tradução de
Bernardo Abreu)
Adelia fiquei apaixonado em conhecer Raimundo!
ResponderExcluirNão é inspirador, Bruno?!
ExcluirAdélia me instigam demais o Bispo, o Raimundo, a Nise, Clarice, Hirst; tantos...acho que eles se encontram numa tentativa de organizacao do mundo interno onde o beneficiário é público cativo da beleza visual, poética, estética que precisamos. A Cabrita, personagem de Mundos Immundus dizia: não entendo porque a dona guardou as cartas e jogou o amor fora. Linda publicação. Obrigada. Bj
ResponderExcluirEu é que agradeço a visita e o comentário, Nany. Você tem toda razão, seja na relação de artistas citados, seja na identificação do maior beneficiário: o público. Beijos. Guardemos as cartas e a amizade. :)
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