Eijiro Miyama, Yokohama, 2013 (Foto: Nadya Lev) |
Nossa quarta
postagem sobre artistas que operam com descartes é dedicada a Eijiró Miyama
(Japão, 1934), um trabalhador da construção que somente depois de se aposentar
começou a dedicar-se às artes plásticas e à performance.
Eijiró Miyama em uma rua de Yokohama - 2014 (Foto: Mario del Curto) |
Com um
orçamento bastante restrito, Miyama vive em um apartamento minúsculo na periferia
de Yokohama. É em seu quarto, que mede cerca de 2m x 4m, que ele armazena
cuidadosamente os adereços utilizados em suas apresentações. Uma cadeira
reclinável serve de cama, um televisor, de diversão, e o vestíbulo guarda ferramentas
e sucatas. Devido à falta de espaço, é na cobertura de seu prédio que o performer ensaia.
Eijiró Miyama no telhado de seu prédio em Yokohama - 2009 (Foto: Mario del Curto) |
Tudo
começou com os chapéus, feitos a partir de tigelas de macarrão instantâneo decoradas.
Aos poucos seu trabalho foi aprimorado e hoje os mais diversos adornos vêm de
todos os lugares: doações de amigos e de estranhos, mercados de pulgas ou mesmo do lixo.
Eijiró Miyama (Foto: internet) |
Segundo o fotógrafo e colecionador Mario Del Curto, “Miyama-san tem muito senso de estilo e faz escolhas sofisticadas para seu figurino: tal chapéu combina com tais óculos; tais óculos fazem conjunto com tal vestido, tal flor vai com tal chapéu. Tudo é codificado." - o que toma tempo, mas é o grande prazer do artista. *
Eijiró Miyama (Foto: internet) |
Miyama ensaia durante a semana e quase todos os domingos sai, em sua bicicleta, para exibir-se pela região ou em Tóquio. A ação é simples: espalhar mensagens de paz por onde anda – “sua personagem e aparência são como uma pequena pedra no sapato da conformidade.” *
_ “Residentes de Yokohama, residentes do mundo, olhem para mim e aproveitem!” *
Eijiró Miyama (Foto: internet) |
Ao pensarmos em uma possível
“dramaturgia” de seu trabalho, seja em termos estéticos seja em termos
procedimentais, ocorre-nos alguns textos do ator, diretor e dramaturgo santista Victor Nóvoa,
em especial Verniz náutico para tufos de
cabelo, escrito em 2014, encenado e publicado em 2016.
Logo na rubrica inicial, Nóvoa
apresenta as personagens e situa o leitor no ambiente em que se dará toda a
ação, o que, sem dúvida, remete ao universo de Miyama:
“Escuridão total. Sons de um corpo se
debatendo no chão e vozes de duas mulheres tentando ajudar. Silêncio total e
prolongado. Vê-se apenas uma seringa sendo preparada e aplicada no braço da
Mulher Inerte. Aos poucos revela-se uma cozinha abarrotada de utensílios
domésticos, todos os tipos, tamanhos e cores de quinquilharias para casa, as
duas personagens mal conseguem se mover no meio desta enorme bagunça. A
sensação de claustrofobia e dificuldade de movimentação dentro da cena irá se
estender por todo o espetáculo. De um lado das quinquilharias está a Cuidadora,
ela amarra fitas cor-de-rosa em um cartão com tufos de cabelo. Filha da Mulher
está arrumando uma mesa de aniversário e tentando abrir um espaço para colocar
cadeiras para os convidados, faz isso enchendo bexigas. Um contrarregra irá colocar
mais objetos no decorrer da cena; os objetos devem ser colocados de forma que
atrapalhe a movimentação das personagens.” **
Cena do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo (Foto: Alécio Cezar) |
Ao longo da peça, percebemos
que os objetos acumulados no pequeno espaço são o duplo concreto do acúmulo
ideológico da personagem Filha da Mulher e, por extensão, do acúmulo a que
todos nós estamos submetidos.
O consumo e o ritmo veloz que
caracterizam o viver contemporâneo, em especial nas grandes cidades, bem como a
imensa variedade de estímulos ao nosso alcance, podem nos impedir de viver em
profundidade as experiências de fruição ou mesmo de relação interpessoal. Assim,
o que pensamos, sentimos e dizemos é, por vezes, muito mais reativo que ativo, isto
é, trazem a chancela do provisório e do descarte:
“Cuidadora procura as bexigas por entre as
quinquilharias. Não acha. Silêncio.
CUIDADORA
— Está difícil de achar.
FILHA
DA MULHER — “A felicidade de encontrar algo é muito maior quando nos esforçamos
sozinhos”, Pedro Bial.
Cuidadora continua procurando e seu corpo
fica afundado no meio dos objetos, está visivelmente com muita dor.
CUIDADORA
— Sabe se tem algum lugar em que possa estar?
FILHA
DA MULHER — Oh, meu Deus, estou aqui concentrada nas lembrancinhas, tenta
naquele armário.
Cuidadora vai até o armário e abre. Caem
muitos objetos dele. Ela acha as bexigas e as entrega à Filha da Mulher.
FILHA
DA MULHER — Encha bexigas, duvido que seu dente doa agora. Concentre-se, “Todo
ofício leva à metafísica”, Dostoiévski. Esta eu li numa revista especializada
em cupcakes.
Cuidadora começa a encher uma bexiga.” **
Se Miyama seleciona, recolhe e
estabelece combinações e funções para a sucata encontrada na rua, dando-lhe um
sentido artístico, mas ao mesmo tempo crítico, o material recolhido por Nóvoa é
de outra ordem. À parte a sucata que se acumula no apto da personagem, são as
frases e comportamentos estandardizados o que plasma a dramaturgia da peça - metáforas
que se complementam. Em outras palavras, quando tudo passa a ser consumido
apenas e não verdadeiramente assimilado e apropriado, o que se tem é o
esvaziamento. Segundo Nóvoa, “o discurso se esvazia e ficamos apenas com o
verniz, daí que Pedro Bial e Dostoiévski tornam-se a mesma coisa”. Aliás, coisificação parece ser um termo
bastante adequado nesse contexto.
Detalhe do cenário do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo (Foto: Alécio Cezar) |
“FILHA
DA MULHER — Então. Todos terão uma lembrança linda e macia da mamãe. Aliás,
está na hora de arrumar mamãe pra festa.
A
Filha da Mulher procura sua Mãe e remove muitas quinquilharias.
FILHA
DA MULHER — Pare de pendurar bexigas e me ajude a procurar mamãe.
Cuidadora
a ajuda a procurar e remove muitas quinquilharias sem achar a Mulher Inerte.
FILHA
DA MULHER — Sempre deixei minha mãe entre os CDs de axé e as enciclopédias
Barsa e Conhecer. Agora vejo os CDs e as enciclopédias e nada de mamãe. Você
tirou alguma coisa do lugar?
CUIDADORA
— Você pediu para limpar as enciclopédias, mas tomei todo o cuidado de colocar
no mesmo lugar.
FILHA
DA MULHER — Pelo jeito todo o cuidado que você tomou não foi suficiente, senão
minha mãe continuaria entre os CDs e as enciclopédias.
CUIDADORA
— Hoje está sendo um dia péssimo, talvez eu...
FILHA
DA MULHER — Qual é sua função nesta casa?
CUIDADORA
— Cuidar da sua mãe.
FILHA
DA MULHER — Então não se meta a limpar as coisas.” **
É como se o que restasse das
vivências e dos contatos com o mundo fosse somente a espuma, o que é superficial.
Assim, a relação patroa-empregada se desumaniza tanto quanto a relação mãe-filha.
Daquela, resta a exploração e a insensibilidade, desta, o verniz de uma comemoração
de aniversário sem sentido.
Curiosamente, a ideia original
para o texto surgiu de uma situação vivida pelo dramaturgo: na festa de
aniversário de uma moribunda, os convidados eram levados a posar com a
aniversariante, obrigando-se a um sorriso “envernizado”. A partir dessa potente
imagem geradora, Nóvoa recuperou cheiros, sensações e outros estímulos que, “friccionados”
entre si, agregados a outros materiais e sujeitos a interferências externas de
parceiros, geraram a peça. Um excelente exemplo de dramaturgia do descarte.
"CUIDADORA
— Olha... Hoje está sendo um dia péssimo, não consigo me concentrar em nada,
cada palavra que você fala fica girando demais antes de eu entender, talvez
seja o dente, deixa eu...
FILHA
DA MULHER — Achei mamãe.
(Por
debaixo de muitos objetos está uma maca de hospital e em cima dela a Mulher
Inerte, completamente paralisada, mas com olhos abertos)
FILHA
DA MULHER — Vamos deixar a mamãe mais bonita do que já está pra festa. Afinal,
ela é a aniversariante. “Cada ano que passa ela fica mais velha”, de quem será
esta frase? Tem umas coisas profundas que gritam dentro da gente e ninguém sabe
quem criou. Bonito, né? Me ajude a trocá-la. (Silêncio) Me ajude a trocá-la." **
Cena do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo (Foto: Alécio Cezar) |
Adélia Nicolete
https://www.youtube.com/watch?v=3NKVuYaeSUk
https://www.youtube.com/watch?v=Q9OTrJVzdxw
* DEL CURTO, Mario. Eijiró Miyama.
In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down :
performance art and the alter ego. New York: American Folk Art Museum,
2015. p. 81 (Tradução de Bernardo Abreu)
** NÓVOA, Victor. Verniz náutico para tufos de cabelo. São Paulo: Giostri, 2016.
(Obs: essa postagem foi atualizada em 27 de janeiro de 2017)
** NÓVOA, Victor. Verniz náutico para tufos de cabelo. São Paulo: Giostri, 2016.
(Obs: essa postagem foi atualizada em 27 de janeiro de 2017)
Mas que ser mais simpático! Haja criatividade e dedicação em tão pouco espaço físico. Algumas pessoas parecem "funcionar" melhor em restritas condições e a criatividade surpreende com o uso inteligente de recursos reciclados! Não o conhecia e me senti estimulada pela alegria e cores que ele nos provê. Adorei, obrigada pela novidade!
ResponderExcluirEu é que agradeço a visita e o comentário, Elaine. A liberdade de Miyama-san é inspiradora.
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