segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Eijiró Miyama


Eijiro Miyama, Yokohama, 2013 
(Foto: Nadya Lev)


Nossa quarta postagem sobre artistas que operam com descartes é dedicada a Eijiró Miyama (Japão, 1934), um trabalhador da construção que somente depois de se aposentar começou a dedicar-se às artes plásticas e à performance.



Eijiró Miyama em uma rua de Yokohama - 2014
(Foto: Mario del Curto)


Com um orçamento bastante restrito, Miyama vive em um apartamento minúsculo na periferia de Yokohama. É em seu quarto, que mede cerca de 2m x 4m, que ele armazena cuidadosamente os adereços utilizados em suas apresentações. Uma cadeira reclinável serve de cama, um televisor, de diversão, e o vestíbulo guarda ferramentas e sucatas. Devido à falta de espaço, é na cobertura de seu prédio que o performer ensaia.

Eijiró Miyama no telhado de seu prédio em Yokohama - 2009
(Foto: Mario del Curto)

Tudo começou com os chapéus, feitos a partir de tigelas de macarrão instantâneo decoradas. Aos poucos seu trabalho foi aprimorado e hoje os mais diversos adornos vêm de todos os lugares: doações de amigos e de estranhos, mercados de pulgas ou mesmo do lixo.


Eijiró Miyama
(Foto: internet)

Segundo o fotógrafo e colecionador Mario Del Curto, “Miyama-san tem muito senso de estilo e faz escolhas sofisticadas para seu figurino: tal chapéu combina com tais óculos; tais óculos fazem conjunto com tal vestido, tal flor vai com tal chapéu. Tudo é codificado." - o que toma tempo, mas é o grande  prazer  do artista. *


Eijiró Miyama
(Foto: internet)

Miyama ensaia durante a semana e quase todos os domingos sai, em sua bicicleta, para exibir-se pela região ou em Tóquio. A ação é simples: espalhar mensagens de paz por onde anda – “sua personagem e aparência são como uma pequena pedra no sapato da conformidade.” *

_ “Residentes de Yokohama, residentes do mundo, olhem para mim e aproveitem!” *

Eijiró Miyama
(Foto: internet)

Ao pensarmos em uma possível “dramaturgia” de seu trabalho, seja em termos estéticos seja em termos procedimentais, ocorre-nos alguns textos do ator, diretor e dramaturgo santista Victor Nóvoa, em especial Verniz náutico para tufos de cabelo, escrito em 2014, encenado e publicado em 2016.

Logo na rubrica inicial, Nóvoa apresenta as personagens e situa o leitor no ambiente em que se dará toda a ação, o que, sem dúvida, remete ao universo de Miyama:

“Escuridão total. Sons de um corpo se debatendo no chão e vozes de duas mulheres tentando ajudar. Silêncio total e prolongado. Vê-se apenas uma seringa sendo preparada e aplicada no braço da Mulher Inerte. Aos poucos revela-se uma cozinha abarrotada de utensílios domésticos, todos os tipos, tamanhos e cores de quinquilharias para casa, as duas personagens mal conseguem se mover no meio desta enorme bagunça. A sensação de claustrofobia e dificuldade de movimentação dentro da cena irá se estender por todo o espetáculo. De um lado das quinquilharias está a Cuidadora, ela amarra fitas cor-de-rosa em um cartão com tufos de cabelo. Filha da Mulher está arrumando uma mesa de aniversário e tentando abrir um espaço para colocar cadeiras para os convidados, faz isso enchendo bexigas. Um contrarregra irá colocar mais objetos no decorrer da cena; os objetos devem ser colocados de forma que atrapalhe a movimentação das personagens.” **


Cena do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo
(Foto: Alécio Cezar)


Ao longo da peça, percebemos que os objetos acumulados no pequeno espaço são o duplo concreto do acúmulo ideológico da personagem Filha da Mulher e, por extensão, do acúmulo a que todos nós estamos submetidos.

O consumo e o ritmo veloz que caracterizam o viver contemporâneo, em especial nas grandes cidades, bem como a imensa variedade de estímulos ao nosso alcance, podem nos impedir de viver em profundidade as experiências de fruição ou mesmo de relação interpessoal. Assim, o que pensamos, sentimos e dizemos é, por vezes, muito mais reativo que ativo, isto é, trazem a chancela do provisório e do descarte:


“Cuidadora procura as bexigas por entre as quinquilharias. Não acha. Silêncio.

CUIDADORA — Está difícil de achar.

FILHA DA MULHER — “A felicidade de encontrar algo é muito maior quando nos esforçamos sozinhos”, Pedro Bial.

Cuidadora continua procurando e seu corpo fica afundado no meio dos objetos, está visivelmente com muita dor.

CUIDADORA — Sabe se tem algum lugar em que possa estar?

FILHA DA MULHER — Oh, meu Deus, estou aqui concentrada nas lembrancinhas, tenta naquele armário.

Cuidadora vai até o armário e abre. Caem muitos objetos dele. Ela acha as bexigas e as entrega à Filha da Mulher.

FILHA DA MULHER — Encha bexigas, duvido que seu dente doa agora. Concentre-se, “Todo ofício leva à metafísica”, Dostoiévski. Esta eu li numa revista especializada em cupcakes.

Cuidadora começa a encher uma bexiga.” **


Se Miyama seleciona, recolhe e estabelece combinações e funções para a sucata encontrada na rua, dando-lhe um sentido artístico, mas ao mesmo tempo crítico, o material recolhido por Nóvoa é de outra ordem. À parte a sucata que se acumula no apto da personagem, são as frases e comportamentos estandardizados o que plasma a dramaturgia da peça - metáforas que se complementam. Em outras palavras, quando tudo passa a ser consumido apenas e não verdadeiramente assimilado e apropriado, o que se tem é o esvaziamento. Segundo Nóvoa, “o discurso se esvazia e ficamos apenas com o verniz, daí que Pedro Bial e Dostoiévski tornam-se a mesma coisa”. Aliás, coisificação parece ser um termo bastante adequado nesse contexto.

Detalhe do cenário do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo
(Foto: Alécio Cezar)


“FILHA DA MULHER — Então. Todos terão uma lembrança linda e macia da mamãe. Aliás, está na hora de arrumar mamãe pra festa.

A Filha da Mulher procura sua Mãe e remove muitas quinquilharias.

FILHA DA MULHER — Pare de pendurar bexigas e me ajude a procurar mamãe.

Cuidadora a ajuda a procurar e remove muitas quinquilharias sem achar a Mulher Inerte.

FILHA DA MULHER — Sempre deixei minha mãe entre os CDs de axé e as enciclopédias Barsa e Conhecer. Agora vejo os CDs e as enciclopédias e nada de mamãe. Você tirou alguma coisa do lugar?

CUIDADORA — Você pediu para limpar as enciclopédias, mas tomei todo o cuidado de colocar no mesmo lugar.

FILHA DA MULHER — Pelo jeito todo o cuidado que você tomou não foi suficiente, senão minha mãe continuaria entre os CDs e as enciclopédias.

CUIDADORA — Hoje está sendo um dia péssimo, talvez eu...

FILHA DA MULHER — Qual é sua função nesta casa?

CUIDADORA — Cuidar da sua mãe.

FILHA DA MULHER — Então não se meta a limpar as coisas.” **


É como se o que restasse das vivências e dos contatos com o mundo fosse somente a espuma, o que é superficial. Assim, a relação patroa-empregada se desumaniza tanto quanto a relação mãe-filha. Daquela, resta a exploração e a insensibilidade, desta, o verniz de uma comemoração de aniversário sem sentido.

Curiosamente, a ideia original para o texto surgiu de uma situação vivida pelo dramaturgo: na festa de aniversário de uma moribunda, os convidados eram levados a posar com a aniversariante, obrigando-se a um sorriso “envernizado”. A partir dessa potente imagem geradora, Nóvoa recuperou cheiros, sensações e outros estímulos que, “friccionados” entre si, agregados a outros materiais e sujeitos a interferências externas de parceiros, geraram a peça. Um excelente exemplo de dramaturgia do descarte.


"CUIDADORA — Olha... Hoje está sendo um dia péssimo, não consigo me concentrar em nada, cada palavra que você fala fica girando demais antes de eu entender, talvez seja o dente, deixa eu...

FILHA DA MULHER — Achei mamãe.

(Por debaixo de muitos objetos está uma maca de hospital e em cima dela a Mulher Inerte, completamente paralisada, mas com olhos abertos)

FILHA DA MULHER — Vamos deixar a mamãe mais bonita do que já está pra festa. Afinal, ela é a aniversariante. “Cada ano que passa ela fica mais velha”, de quem será esta frase? Tem umas coisas profundas que gritam dentro da gente e ninguém sabe quem criou. Bonito, né? Me ajude a trocá-la. (Silêncio) Me ajude a trocá-la." **

Cena do espetáculo Verniz náutico para tufos de cabelo
(Foto: Alécio Cezar)



Adélia Nicolete



Eijiró Miyama pode ser visto em ação nos endereços abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=3NKVuYaeSUk

https://www.youtube.com/watch?v=Q9OTrJVzdxw



* DEL CURTO, Mario. Eijiró Miyama. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down : performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015.  p. 81 (Tradução de Bernardo Abreu)

**  NÓVOA, Victor. Verniz náutico para tufos de cabelo. São Paulo: Giostri, 2016.

(Obs: essa postagem foi atualizada em 27 de janeiro de 2017)

2 comentários:

  1. Mas que ser mais simpático! Haja criatividade e dedicação em tão pouco espaço físico. Algumas pessoas parecem "funcionar" melhor em restritas condições e a criatividade surpreende com o uso inteligente de recursos reciclados! Não o conhecia e me senti estimulada pela alegria e cores que ele nos provê. Adorei, obrigada pela novidade!

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    1. Eu é que agradeço a visita e o comentário, Elaine. A liberdade de Miyama-san é inspiradora.

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