À turma
do Ateliê de Dramaturgia da UDESC,
com quem primeiro dividi Rock N Roll
Dele não sabemos a identidade oficial, apenas que se autodenomina Rock N Roll e que nasceu nos Estados Unidos em 1942.
Assim
como o renomado escultor John Chamberlain, de quem falamos nas postagens anteriores,
Rock N Roll fez da cidade de Detroit sua morada desde, no mínimo, os anos 1960. É
lá que apresenta performances em shows ao ar livre ou em eventos
esportivos, com o figurino por ele mesmo confeccionado. Também como
Chamberlain, faz da sucata matéria-prima para sua arte.
Rock N Roll - Calças - meados dos anos 1990 - técnica mista (Coleção Lisa Spindler) |
Artista
de rua, totalmente fora do circuito, tornou-se relativamente conhecido após ter
sido “descoberto” pela fotógrafa Lisa Spindler: “Conheci Rock N Roll em uma
esquina em Detroit em meados dos anos 1990. Ele estava parado, sozinho, reluzindo
da cabeça aos pés com as colagens de objetos coloridos, que havia costurado em
suas roupas imitando joias. Esse foi o começo de nossa amizade e da minha
coleta de seu trabalho.” *
“Olhando
suas obras, pode-se facilmente detectar referências a eventos passados e
presentes, política, música, cultura pop, fatos memoráveis e históricos. Suas
roupas se tornam uma colorida tapeçaria de mensagens em tecido, memórias e
histórias – tudo cuidadosamente pensado e costurado com uma intenção.” *
Rock N Roll
desenvolveu uma rotina diária de criação no minúsculo apartamento em que mora. O
material que recolhe – sucata, doações, descartes – sempre de pequenas
dimensões, é cuidadosamente separado e guardado em sacos de papel, eles também de
segunda mão. Cada objeto terá um destino específico e poderá ficar por longo
tempo à espera, até que o artista encontre uma roupa adequada para recebê-lo. Essa
adequação dependerá do show e de sua importância, por exemplo, mas também do
tipo de efeito que se queira causar ou do que se desejará dizer com o figurino:
Rock N Roll - Camisa (frente) - início anos 2000 - técnica mista (Coleção Lisa Spindler) |
As performances de Rock N Roll provocam
estímulos sensoriais: música no alto-falante, dança; cores, brilhos e ruídos do
figurino. Há interação permanente com o público, à vontade para se aproximar e ver
de perto seus trajes, o que estimula conversas sobre memória, música e arte com espectadores de todas as idades.
À primeira vista, parece que suas composições atraem pelo excesso. De perto, no entanto, elas têm a capacidade de sugar o espectador para outra dimensão – aquela do artesanato, da seleção e da organização meticulosa dos materiais, da composição quase ritualística não apenas de uma peça, mas de um sistema, com suas regras e seus códigos, e com finalidades determinadas, entre elas, a de provocar encantamento. Faz-me lembrar a relação que Walter Benjamin estabeleceu entre o narrador e o catador de lixo ou sucata, figura miserável que coleta os restos urbanos como forma de sobrevivência, mas também para não deixar que as coisas se percam, que deixem de cumprir o seu destino, reintegradas ao mundo.
Ao contrário de John Chamberlain, que trabalha com sucatas de grandes peso e dimensões, Rock N Roll é o catador de bugigangas, as que pode armazenar em seu quarto/ateliê de subúrbio. Ambos compõem narrativas de grande poder comunicativo, mas um deles veste suas criações e com o corpo e a voz oferece ainda mais textos à leitura do público.
À primeira vista, parece que suas composições atraem pelo excesso. De perto, no entanto, elas têm a capacidade de sugar o espectador para outra dimensão – aquela do artesanato, da seleção e da organização meticulosa dos materiais, da composição quase ritualística não apenas de uma peça, mas de um sistema, com suas regras e seus códigos, e com finalidades determinadas, entre elas, a de provocar encantamento. Faz-me lembrar a relação que Walter Benjamin estabeleceu entre o narrador e o catador de lixo ou sucata, figura miserável que coleta os restos urbanos como forma de sobrevivência, mas também para não deixar que as coisas se percam, que deixem de cumprir o seu destino, reintegradas ao mundo.
Ao contrário de John Chamberlain, que trabalha com sucatas de grandes peso e dimensões, Rock N Roll é o catador de bugigangas, as que pode armazenar em seu quarto/ateliê de subúrbio. Ambos compõem narrativas de grande poder comunicativo, mas um deles veste suas criações e com o corpo e a voz oferece ainda mais textos à leitura do público.
Rock N Roll - Camisa (frente) - início anos 2000 - técnica mista (Coleção Lisa Spindler) |
Cada
uma das peças de Rock N Roll é capaz de me fazer pensar sobre a dramaturgia, sobre o verdadeiro
trabalho artesanal que é compor a partir de materiais previamente pesquisados,
coletados, selecionados e organizados criteriosamente. O dramaturgo, assim como o artista plástico, opera com materialidades - imagens, dimensões, espacialidade, perspectiva, profundidade. Opera com simetria e assimetria, equilíbrio ou desequilíbrio, luz e sombra, claro ou
escuro. Utiliza recorte e colagem, justaposição, sobreposição, repetição; alinhava, enreda, costura, borda, aplica, arremata. Considera tempo e espaço, duração, ritmo, pausas, intensidades, e assim por diante.
Heiner Müller, em "Descrição de imagem", por exemplo, compõe um bloco de escrita - um único parágrafo de seis páginas, verdadeiro suporte em que agrega elementos/imagens os mais diversos. O todo nos causa uma impressão caótica, excessiva. É na aproximação que somos capazes de reconhecer o trabalho meticuloso do dramaturgo, de identificar (ou pelo menos supor) as referências, as simbologias presentes no caudal de palavras/imagens. O trecho inicial dá-nos uma pequena amostra da composição, desafiadora de uma transposição para a cena:
Como bom "dramaturgo", Rock N Roll também escolhe cada elemento em função de seu objetivo, há intencionalidade em suas decisões. O bordado e a costura de cada objeto compõem não só um figurino rapsódico, mas uma narrativa igualmente fragmentada e determinada por texturas, materiais, tamanhos, origens, localização e efeitos diferentes.
Para além dessas reflexões formais, vale abrir um outro campo, a ser explorado oportunamente: quantos e
quais têm sido os descartes à disposição do dramaturgo nos dias de hoje, como eles
podem ser articulados e com vistas a quais objetivos? Creio que valha a pena uma investigação melhor direcionada a esse tema que, valendo-se de estratégias de composição ligadas a outras linguagens, precipite-se em formas além do drama e nos leve a narrativas reintegradoras.
Adélia
Nicolete
* SPINDLER, Lisa. Rock’n’Roll.
In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the
curtain never comes down : performance art and the alter ego. New York: American Folk Art Museum, 2015. p. 104 (Tradução de Bernardo Abreu)
** MÜLLER, Heiner. Descrição de imagem. In: MÜLLER, Heiner. Medeamaterial e outros textos. Trad. de C. Roehrig e M. Renaux. São Paulo: Paz e Terra, 1993. p. 153-159
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