domingo, 16 de agosto de 2015

Rock N Roll - um performer do descarte



                                       À turma do Ateliê de Dramaturgia da UDESC,
com quem primeiro dividi Rock N Roll



Dele não sabemos a identidade oficial, apenas que se autodenomina Rock N Roll e que nasceu nos Estados Unidos em 1942.

Assim como o renomado escultor John Chamberlain, de quem falamos nas postagens anteriores, Rock N Roll fez da cidade de Detroit sua morada desde, no mínimo, os anos 1960. É lá que apresenta performances em shows ao ar livre ou em eventos esportivos, com o figurino por ele mesmo confeccionado. Também como Chamberlain, faz da sucata matéria-prima para sua arte.


Rock N Roll - Calças - meados dos anos 1990 - técnica mista
(Coleção Lisa Spindler) 



Artista de rua, totalmente fora do circuito, tornou-se relativamente conhecido após ter sido “descoberto” pela fotógrafa Lisa Spindler: “Conheci Rock N Roll em uma esquina em Detroit em meados dos anos 1990. Ele estava parado, sozinho, reluzindo da cabeça aos pés com as colagens de objetos coloridos, que havia costurado em suas roupas imitando joias. Esse foi o começo de nossa amizade e da minha coleta de seu trabalho.” *


Rock N Roll desenvolveu uma rotina diária de criação no minúsculo apartamento em que mora. O material que recolhe – sucata, doações, descartes – sempre de pequenas dimensões, é cuidadosamente separado e guardado em sacos de papel, eles também de segunda mão. Cada objeto terá um destino específico e poderá ficar por longo tempo à espera, até que o artista encontre uma roupa adequada para recebê-lo. Essa adequação dependerá do show e de sua importância, por exemplo, mas também do tipo de efeito que se queira causar ou do que se desejará dizer com o figurino:

“Olhando suas obras, pode-se facilmente detectar referências a eventos passados e presentes, política, música, cultura pop, fatos memoráveis e históricos. Suas roupas se tornam uma colorida tapeçaria de mensagens em tecido, memórias e histórias – tudo cuidadosamente pensado e costurado com uma intenção.” *


Rock N Roll - Camisa (frente) - início anos 2000 - técnica mista
(Coleção Lisa Spindler) 

As performances de Rock N Roll provocam estímulos sensoriais: música no alto-falante, dança; cores, brilhos e ruídos do figurino. Há interação permanente com o público, à vontade para se aproximar e ver de perto seus trajes, o que estimula conversas sobre memória, música e arte com espectadores de todas as idades. 

À primeira vista, parece que suas composições atraem pelo excesso. De perto, no entanto, elas têm a capacidade de sugar o espectador para outra dimensão – aquela do artesanato, da seleção e da organização meticulosa dos materiais,  da composição quase ritualística não apenas de uma peça, mas de um sistema, com suas regras e seus códigos, e com finalidades determinadas, entre elas, a de provocar encantamento. Faz-me lembrar a relação que Walter Benjamin estabeleceu entre o narrador e o catador de lixo ou sucata, figura miserável que coleta os restos urbanos como forma de sobrevivência, mas também para não deixar que as coisas se percam, que deixem de cumprir o seu destino, reintegradas ao mundo.

Ao contrário de John Chamberlain, que trabalha com sucatas de grandes peso e dimensões, Rock N Roll é o catador de bugigangas, as que pode armazenar em seu quarto/ateliê de subúrbio. Ambos compõem narrativas de grande poder comunicativo,  mas um deles veste suas criações e com o corpo e a voz oferece ainda mais textos à leitura do público.


Rock N Roll - Camisa (frente) - início anos 2000 - técnica mista
(Coleção Lisa Spindler)

Cada uma das peças de Rock N Roll é capaz de me fazer pensar sobre a dramaturgia, sobre o verdadeiro trabalho artesanal que é compor a partir de materiais previamente pesquisados, coletados, selecionados e organizados criteriosamente. O dramaturgo, assim como o artista plástico, opera com materialidades - imagens, dimensões, espacialidade, perspectiva, profundidade. Opera com simetria e assimetria, equilíbrio ou desequilíbrio, luz e sombra, claro ou escuro. Utiliza recorte e colagem, justaposição, sobreposição, repetição; alinhava, enreda, costura, borda, aplica, arremata. Considera tempo e espaço, duração, ritmo, pausas, intensidades, e assim por diante.

Heiner Müller, em "Descrição de imagem", por exemplo, compõe um bloco de escrita - um único parágrafo de seis páginas, verdadeiro suporte em que agrega elementos/imagens os mais diversos. O todo nos causa uma impressão caótica, excessiva. É na aproximação que somos capazes de reconhecer o trabalho meticuloso do dramaturgo, de identificar (ou pelo menos supor) as referências, as simbologias presentes no caudal de palavras/imagens. O trecho inicial dá-nos uma pequena amostra da composição, desafiadora de uma transposição para a cena:

"Uma paisagem entre estepe a savana, o céu de um azul prussiano, duas nuvens imensas flutuando lá dentro, como que unidas por esqueletos de arame, em todo caso de estrutura desconhecida, a maior, da esquerda, poderia ser um animal de borracha de um parque de diversões que se desgarrou de seu guia, ou um pedaço da Antártida em seu voo de regresso, no horizonte uma serra plana, à direita na paisagem uma árvore, num olhar mais preciso são três árvores altas distintas em forma de cogumelo, tronco com tronco, talvez de uma raiz, a casa no primeiro plano mais produto industrial que manual, provavelmente concreto (...)" **


Como bom "dramaturgo", Rock N Roll também escolhe cada elemento em função de seu objetivo, há intencionalidade em suas decisões. O bordado e a costura de cada objeto compõem não só um figurino rapsódico, mas uma narrativa igualmente fragmentada e determinada por texturas, materiais, tamanhos, origens, localização e efeitos diferentes.


Para além dessas reflexões formais, vale abrir um outro campo, a ser explorado oportunamente: quantos e quais têm sido os descartes à disposição do dramaturgo nos dias de hoje, como eles podem ser articulados e com vistas a quais objetivos? Creio que valha a pena uma investigação melhor direcionada a esse tema que, valendo-se de estratégias de composição ligadas a outras linguagens, precipite-se em formas além do drama e nos leve a narrativas reintegradoras.

Adélia Nicolete



*  SPINDLER, Lisa. Rock’n’Roll. In: AMERICAN FOLK ART MUSEUM. When the curtain never comes down : performance art and the alter ego.  New York: American Folk Art Museum, 2015.  p. 104 (Tradução de Bernardo Abreu)

** MÜLLER, Heiner. Descrição de imagem. In: MÜLLER, Heiner.  Medeamaterial e outros textos. Trad. de C. Roehrig e M. Renaux.  São Paulo: Paz e Terra, 1993. p. 153-159

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