John Chamberlain - "Pigmeat's E ♭ Bluesong" - 1981 (Foto: Adélia Nicolete) |
Para Assis Benevenuto,
pelas discussões afins
Em um de seus poemas, Manoel de Barros constata:
“O que é bom para o lixo é bom para poesia”. Quando
tomamos contato ao vivo com as esculturas de John Chamberlain expostas no museu Dia:
Beacon, percebemos os olhos, o espírito e as mãos de poeta que moldaram cada
uma delas a partir da sucata. Olhos capazes de identificar em um desmanche de
carros ou em um depósito de ferro velho peças com potencial estético; espírito
capaz de imaginar tanto uma composição desses materiais em bruto, quanto de vislumbrar
alterações ou intervenções, e mãos, dele ou de seus auxiliares, sensíveis o
bastante para concretizar as ideias.
Diante disso, é praticamente impossível não
pensar em dramaturgia.
John Chamberlain - Flufft - 1977 (Foto: Adélia Nicolete) |
Para o observador incauto,
cada trabalho de Chamberlain resume-se a um amontoado de peças de origens
diversas. Pode sentir-se atraído pelas cores, pela identificação de uma marca
ou modelo de carro aqui e ali, mas é só isso. Na maioria das vezes não passa de
um olhar superficial, como aquele que pousamos sobre quase tudo em nosso dia-a-dia
graças à necessidade de cumprir, de “ticar” automaticamente a superoferta de
imagens e textos a que estamos submetidos.
John Chamberlain - "Two dark ladies" - 1977 (Foto: Adélia Nicolete) |
John Chamberlain - "Two dark ladies" (outro ângulo) - 1977 (Foto: Adélia Nicolete) |
John Chamberlain - "Swift Wi T" - 1979 (Foto: Adélia Nicolete) |
No entanto, um visitante que
estiver disposto a demorar-se um pouco mais no entorno da peça, disposto a
moldar seu corpo para observá-la melhor e descobrir-lhe os segredos, a esse
será servido um poema.
John Chamberlain - "Royal Vector" - 1967 (Foto: Adélia Nicolete) |
John Chamberlain - "Royal Vector" (outro ângulo) - 1967 (Foto: Adélia Nicolete) |
As esculturas-poema de John
Chamberlain expõem a produção e o consumo excessivos e a permanência incômoda
do resto – mesmo que disfarçado de arte. Falam da monumentalidade efêmera, da
delicadeza do aço e de sua vontade de transcender em renda, filigrana, ave. Como em um Franskenstein, força-se a dureza do material até que adquira bons modos, movimentos
arredondados, até que alcance o sublime e ganhe, assim, a nossa aceitação.
A maioria dos trabalhos
expostos despertou-me a compaixão – pelo material em si e seu esforço de
aceitação; sua entrega, ainda que resistente, ao fogo, à prensa, à lâmina. Compaixão pelo artista, por uma carreira dedicada a dar sentido ao desprezível, a
compensar perante a natureza o monturo de toda uma civilização.
John Chamberlain - "Coup d'soup" - 1980 (Foto: Adélia Nicolete) |
Quantos descartes
temos disponíveis para o ofício da dramaturgia? Os da ética e da filosofia. Os da História e da
humanidade. Quantos e quais são os resíduos de uma sociedade da pressa, do hedonismo,
da competição e da individualidade? Os descartes do texto verbal, o vazio e o
provisório das trocas dialógicas contemporâneas. A descartabilidade da
linguagem – o que é durável em uma arte que prima pelo momento presente do espetáculo?
O que perdura no corpo/memória do espectador? O que ele pode compor com outras materialidades
ou imaterialidades a fim de realizar a si próprio como obra, mesmo que provisória?
O quanto há
de escultórico no trabalho do dramaturgo? Com que elementos opera? Permanecemos presos a estruturas
já fixadas, que capturam de imediato a cumplicidade habitual do público ou
arriscamo-nos a explorar os desmanches e depósitos de ferro-velho à cata de materiais
à espera de transcendência poética, como conclama Manoel de Barros?
“As coisas que os líquenes
comem
- sapatos, adjetivos -tem muita importância para os pulmões
da poesia
“Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia
(...)
“As coisas jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora"
Esse assunto não é novidade, mas por aqui é. O descarte e a tridimensionalidade da dramaturgia têm me (i)mobilizado, agora não só como pesquisadora/teórica. Ânsia por transcender.
(Mais obras de Chamberlain e maiores informações sobre o museu Dia: Beacon, consultar as duas postagens anteriores.)
(Mais obras de Chamberlain e maiores informações sobre o museu Dia: Beacon, consultar as duas postagens anteriores.)
Adélia Nicolete
Que incrível, Adélia!
ResponderExcluirSuas provocações chegam causam um aperto em meu peito.
Obrigado
São as obras de Chamberlain e a poesia de Manoel de Barros, Bruno. Não se iluda. :)
ResponderExcluirUm abraço pra ti, querido. Eu é que agradeço.
Olha! Adélia, fui ler outro post que tinha 3 outros posts linkados. Então fui pulando atravessando através dos elos e pah. Cheguei aqui. Eu não tenho certeza se tinha visto esse post. Acho que me passou... Mas mesmo com o delay de quase 5 anos, puxa!, o pensamento dramatúrgico do descarte é muito forte. Salve.
ResponderExcluirObrigada pela visita pula-pula, Assis! rsrs Viu só? Dediquei a você a postagem e cinco anos depois ela ainda pulsa. Foi bem na época em que você me provocava com o "Ser crânio". Com o Chamberlain parece que algumas coisas fizeram sentido. Eu acho... Um beijo, querido!
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