terça-feira, 30 de setembro de 2014

"Reveillon" e "O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário" – uma família, um apartamento, quarenta anos de intervalo


Elenco do espetáculo "O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário"
Natália Guimarães, Edu Silva, Solange Moreno, Daniel Ortega, Cristiano Sales
Foto: Divulgação


Um dos temas mais abordados no teatro, os conflitos familiares, em suas mais diversas configurações, estiveram presentes desde os primórdios dessa arte, correspondendo a um contexto ou lançando sobre ele as luzes do entendimento. Longe de traçar um panorama, pretende-se nesse artigo esboçar um estudo comparativo de dois textos brasileiros que tratam da temática familiar, bem como assinalar, nas diferenças entre eles, algumas das transformações por que passou a dramaturgia no interregno de quarenta anos que os distancia no tempo.

O primeiro texto, Reveillon, foi escrito em 1974 por Flávio Márcio. Estreou naquele ano no Rio de Janeiro e, no ano seguinte, em São Paulo, obtendo grande sucesso de público e de crítica. O segundo, O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário, veio à cena em 2014 na capital paulista, com dramaturgia textual e direção de Evill Rebouças para pesquisa coletiva da Cia Artehúmus de Teatro. Nas duas peças, pai, mãe e um casal de filhos dividem com a morte um apartamento de classe média na metrópole.

Flávio Márcio nasceu nas Minas Gerais em 1945, transferindo-se, ainda jovem, para o eixo Rio-São Paulo, onde atuou como jornalista, publicitário e dramaturgo até o falecimento, em 1979, aos 34 anos. Sua dramaturgia, sempre de autoria individual e levada à cena nos moldes convencionais, deu-se entre os anos de 1960 e 1970, período em que o Brasil, ao mesmo tempo em que passava pelos rigores da ditadura militar, começava a desenvolver práticas horizontalizadas de criação. Contra a ditadura do diretor e do autor, a chamada criação coletiva propunha a desierarquização das funções e atendeu tanto ao engajamento político de esquerda quanto a iniciativas tidas, na época, como “alienadas”. Na obra autoral de Flávio Márcio, a repressão vivida pelo país naquele momento, parece ter encontrado reflexos e correspondência no âmbito familiar de composição tradicional, o que pode ser verificado em Réveillon, em À moda da casa e em Tiro ao alvo, textos pertencentes à trilogia Família à moda da casa.

Evill Rebouças, filho dos anos 1960 – assim como alguns dos atores da Cia Artehúmus –, cresceu e fez os primeiros anos de sua formação escolar no ABC paulista, sob a ditadura. Nas duas décadas seguintes, o fortalecimento do teatro amador, grande parte das vezes lançando mão de princípios da criação coletiva, em fábricas, nas igrejas e nas escolas,  garantiu o acesso de muitos jovens às diversas funções do fazer teatral. Daí ser bastante comum encontrarmos entre os artistas daquela geração e daquele local, quem se desdobre na dramaturgia, na direção, na interpretação ou em outras áreas, caso de Evill. A partir de meados dos anos 1980, fase da abertura política nacional, a região do ABC, em especial a cidade de Santo André, pode contar com a oferta de oficinas livres de artes, além de cursos formais nos recém criados Centros Comunitários, Escolas Municipais de Iniciação Artística e Escola Livre de Teatro. Tais iniciativas contribuíram, se não para o aumento do número de grupos amadores, ao menos para a capacitação de artistas que, a partir de então, buscaram a atuação profissional em teatro, ideia praticamente inconcebível em períodos anteriores.


O enredo

Reveillon transcorre no último dia de 1973. À medida que o relógio anuncia, com seu tique-taque, o final do ano aproximar-se, os quatro membros de uma família desfilam suas incapacidades e frustrações, suas derrotas e a mesmice de uma vida que se arrasta de modo solitário, ainda que em grupo.

Desde a primeira cena a morte ronda o apartamento, sob as mais diversas formas. Porém, é próximo ao final que o leitor/espectador percebe com clareza a intenção dos personagens: dar fim à própria existência, antes que o próximo ano chegue e a morte em vida recomece. O jovem Guima, poeta insipiente, abre a peça preparando o laço de uma forca enquanto sua mãe, Adélia, mostra-se incapaz de compreendê-lo. Logo de início é possível notar, na tentativa de diálogo entre eles, a falência da comunicação, cada vez mais comprometida ao longo da trama. O diálogo inaugural da peça dá o tom do que virá a seguir:

“GUIMA (lendo, reflexivamente, no caderno ao lado): “Não a face dos mortos...”
ADÉLIA (impaciente, mas tentando ser compreensiva): Dá dinheiro isso, meu filho?
GUIMA (continuando, indiferente): “... nem a face dos que não coram aos açoites da vida.”
ADÉLIA (continuando): Passar o dia inteiro com um pedaço de papel e um lápis na mão escrevendo coisinhas... Responde!
GUIMA (continuando com a leitura do poema): “Mas a face lívida dos que resistem pelo espanto.”
ADÉLIA (irritada): Dá dinheiro, por acaso? Dinheiro coisa nenhuma!
GUIMA (voltando à realidade): Quê que tem? Que que a senhora disse?”

O desejo poético não encontra lugar em uma casa já sem alma – em um país cujo desejo político foi solapado –, o que leva Guima a fugir, na tentativa de livrar-se da morte anunciada.

Murilo, o pai de família, tendo dificuldade de se fazer ouvido pelos demais, passa o dia tentando finalizar uma autobiografia pífia, elaborando a lista de agradecimentos que é praticamente uma despedida. Ele pouco fala e suas palavras têm importância nenhuma no curso das ações. Por vezes parece que o peso da realidade “lá fora” (fora das quatro paredes ou fora do “eu”) é permanentemente evitado pelo casal. A filha, Janete, a protagonista, encarrega-se de ser e de trazer para dentro da casa uma verdade incômoda: a de sustentar a casa como prostituta. Naquela noite fatídica, a moça chega do trabalho e junta-se à mãe no preparo da última ceia que, à semelhança da relação entre as duas, acaba desandando. Durante toda a ação da peça, Janete debate-se entre a banalidade e o cansaço do presente e o passado romântico, lembrando-se do amor impossível, num desespero que justifica seu gesto final.

Fora da órbita familiar gravita Fernando, antigo pretendente de Janete. Não se sabe ao certo se ele é real ou se existiu apenas na imaginação e no desejo da moça. Embora a troca dialógica entre os dois esteja menos comprometida, a comunicação não se dá plenamente, pois o amor é incapaz de superar as diferenças: Janete considera-se indigna do namorado. No ápice do desassossego, cada personagem encontra a maneira mais apropriada de se libertar do peso da existência. Guima morre de forma misteriosa, fora de cena – tantos pereceram dessa forma na época. Adélia enforca-se, interrompendo a profusão da fala, enquanto Murilo usa o revólver. Janete é a última. Atende um Fernando imaginário que vem propor casamento, mas já é tarde. Atira-se e às ilusões pela janela.

Em Reveillon, a incomunicabilidade é apenas uma das consequências da deterioração de relações familiares, em especial daquelas fundadas nos moldes tradicionais. Flávio Márcio traduz essa fratura por meio de interrupções de fala e pensamento, de elipses, de diálogos breves permeados por circunlóquios e pelo uso abundante de reticências. A criação individual do texto e a desvinculação entre autor e sala de ensaio, característicos de boa parte da dramaturgia do período, favoreceram o detalhamento das rubricas, que, não apenas sugerem a intenção dos personagens, mas estendem-se à determinação precisa de cenário e objetos, do figurino, da movimentação dos atores e de recursos audiovisuais.


A revisão do enredo

A trama de Reveillon é relativamente simples em relação a algumas propostas atuais. O teatro contemporâneo tem-se desprendido cada vez mais da ideia de enredo como o arranjo de ações em fluxo causal, algo que durante séculos norteou a composição dramatúrgica. À noção de uma história facilmente reproduzível contrapõe-se uma tessitura polifônica de palavras, ações, situações e temas, resultando em um tipo de escrita em que a identificação de uma fábula torna-se difícil ou mesmo impossível. É assim com O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário.

A recusa em apontar um caminho interpretativo começa pelo título. Trata-se de uma metáfora referente não só ao conteúdo, mas ao percurso do público pelas águas do espetáculo, em busca de um sentido para a cena ou, se preferir, para a vida na “modernidade líquida” em que nos encontramos.

A família, aqui, não é mais a de composição clássica. Pai e mãe dividem o apartamento com dois filhos legítimos, mas sabe-se que existe uma ex-mulher e uma outra filha, eventualmente citadas. Longe de ser mero detalhe, esse arranjo figura em parte o quadro familiar contemporâneo, e os conflitos nele gerados, ainda que semelhantes aos convencionais em alguns de seus efeitos, são de outra ordem, sobretudo econômica e emocional.

Se um apartamento, pago em infinitas prestações, era o sonho dourado da classe média retratada por Flávio Márcio, o condomínio figurado em O desvio do peixe... é, muitas vezes, o sonho possível no neo-liberalismo. Atende, qual fortificação medieval, ao anseio por segurança, intensificando-se o medo daquilo que corre além das muralhas e das cercas elétricas. É preciso sentir-se protegido e vigiado para sentir-se livre.

Nesse contexto, é Téo, o filho morto, quem recebe o espectador a fim de apresentar a família. Mas, se em Reveillon, foi a angústia pela não-comunicação e pela negação da vida o que conduziu os personagens ao suicídio (visto, inclusive, como metáfora da falência de certo modus vivendi), em O desvio do peixe... a morte ocorre de modo absolutamente involuntário. Tom, o peixe do aquário, é morto por uma bala perdida que atravessa a janela; o filho da diarista, detido num abrigo de menores, leva um tiro, e Téo, o anfitrião, não morre de nada, conforme ele mesmo esclarece:

“Eu morri de nada, simplesmente deitei, dormi e não acordei mais. Mas isso era tão pouco, tão simples que não fazia sentido... Sentido teria se eu tivesse morrido de bala perdida... levar um tiro no meio da testa, igual ao filho da diarista... Mas não, eu não morri de febre, de úlcera, de cistite, de convulsão... (...)”

A revelação de Téo esconde a ironia de um tempo em que a morte natural caiu em desuso. Paradoxalmente, o menino morto parece mais vivo que seus pais e sua irmã. Téo é o espírito que retorna e tenta compreender aqueles cuja alma está prestes a desvanecer. João Paulo, seu pai, “o provedor” – assim definindo na dramatis personae –, passa a vida tentando desincumbir-se de tarefas prosaicas – o trabalho que não lhe dá prazer, o pagamento de contas, uma pesquisa para seu curso supletivo e a reflexão sobre a peregrinação dos atuns – lamentando-se por não conseguir relacionar-se em profundidade com os filhos. Seu drama é comum à maioria dos provedores, a quem cabe trabalhar cada vez mais para manter um padrão de vida familiar, e de quem se cobra uma presença muitas vezes impossível.







Publicado originalmente em
Ateliê compartilhado, nº 2, março/2014




sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte - Parte II


O artista plástico Eymard Brandão em seu ateliê em Nova Lima
Foto: Thiago Fernandes

Ao receber o convite para conduzir a abertura do Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, considerei propor uma atividade semelhante às que desenvolvi em minha pesquisa para o doutoramento. Sua base é o diálogo estreito da escrita com as artes plásticas, o que atesta a originalidade da proposta tanto quanto justifica, entre nós, o uso do termo Ateliê em vez do tradicional Oficina – um espaço de criação artística, proporcionada pelo contato com a materialidade da tinta na tela, da pedra, da palavra.

Considerei também o quanto seria motivador o trabalho com a obra de algum artista que eu mesma desconhecesse e, por esse motivo, cheguei a Eymard Brandão, mineiro de Belo Horizonte, nascido em 1946 e morador dos arredores da cidade. Tanto quanto os aspectos estéticos da produção, o que me fez decidir pelo seu nome foi a pesquisa atual, feita a partir de resíduos minerais que o artista transforma em matéria prima. Eymard tem registrado as mudanças e também o impacto ambiental causados pelas grandes mineradoras na paisagem de seu Estado, algo que considerei bastante sugestivo no campo da dramaturgia.


Obra de Eymard Brandão analisada pelo grupo

Assim, em linhas bastante gerais, depois da apreciação coletiva de uma obra feita pelo grupo, e da apresentação do artista, de parte do acervo e de suas inquietações, a primeira camada sugerida para reflexão foi quais são os resíduos com que opera o dramaturgo hoje? Resíduos de linguagem, de relações, de crenças e narrativas, por exemplo? Resíduos da própria forma de se fazer teatro ou se escrever para?

A segunda camada implicaria em analisar os resíduos referentes à geografia do grupo: com que resíduos de mineiridade trabalha-se agora? A modificação da paisagem interna mineira e seus reflexos na dramaturgia. Dito de outro modo, o que as Minas Gerais de hoje conserva daquilo que a caracterizou ou ainda caracteriza aos olhos do estrangeiro: religiosidade, hospitalidade, oralidade, boa mesa, literatura. O que disso tudo ainda é e o que já virou resíduo a ser trazido à cena?

O fato de o grupo constituir-se de dramaturgos já experientes, deu-me a liberdade de tornar ainda mais complexa a proposição, ao partir para uma terceira camada, a de minhas inquietações recentes acerca de dramaturgia e memória. Desse modo, a questão colocada disse respeito à elaboração do pensamento de personagens atravessados pela velocidade, pela imediatez e pela superficialidade atuais, assim como pela substituição acelerada de experiências que não chegam a constituir-se em memória propriamente dita, mas em impressões até certo ponto voláteis. Como se pode dar uma transmissão de experiência ou a comunicação entre essas figuras? Na tentativa de apresentar algo concreto com que se trabalhar essa articulação, sugeri uma passagem da bíblia, a da multiplicação dos pães e dos peixes, tradicional e amplamente conhecida (de pronta recordação), fechada em uma unidade de ação e de sentido, simples, clara e direta. Como cada personagem/narrador poderia recuperar e transmitir essa tal situação – ouvida, sonhada ou vivida?

Finalmente, foi sugerida um camada que dissesse respeito ao narrador, já que a proposta seria a da elaboração de um episódio narrado. Tal narrador seria definido não a partir das motivações internas de cada participante, mas de um contato com a realidade externa, abrindo espaço para o acaso na criação. Os dramaturgos teriam um tempo para percorrer o entorno do Galpão Cine Horto e, a partir de observação atenta, identificar alguma pessoa capaz de inspirar um  personagem encarregado da manifestação.

Submersos em todas essas camadas, acrescidas dos elementos levantados na apreciação coletiva da obra, aos dramaturgos foi dado um tempo para que criassem uma narrativa breve, centrada no personagem escolhido e que contivesse, de algum modo, a memória da passagem bíblica.

Brotaram daí onze materiais textuais atravessados pelas artes de Eymard Brandão; por reflexões acerca de memória, geografia e pertencimento; pelos materiais residuais de forma e conteúdo, assim como pelas inquietações da cena contemporânea e daqueles que fazem o teatro (de) hoje.


Assis Benevenuto, Marcos Coletta (Galpão Cine Horto), eu, Vinícius Souza e Leonardo Lessa (Galpão Cine Horto)
Inhotim - agosto de 2014

Agradeço ao Vinícius Souza e ao Assis Benevenuto pelo convite, pela imersão e pela diversão; à equipe do Galpão Cine Horto pela recepção invariavelmente calorosa e, sobretudo, aos dramaturgos do projeto, pelo generoso "sim".

Boas escritas!



para saber mais sobre Eymard Brandão e seu trabalho, acessar:
http://www.eymardbrandao.com.br

sábado, 20 de setembro de 2014

Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte - Parte I


Fachada Galpão Cine Horto
Ilustração: Thiago Mazza


O estímulo à criação dramatúrgica em Belo Horizonte foi assumido pelo Galpão Cine Horto praticamente desde sua criação, há quinze anos. A formação de um Núcleo de Dramaturgia deu-se em paralelo com a criação do espetáculo Caixa Postal 1500, no projeto Oficinão. Sob a coordenação de Luís Alberto de Abreu, o Núcleo reuniu mais de uma dezena de dramaturgos interessados no desenvolvimento de uma escrita textual em contato estreito com a cena. Dali em diante, a experiência foi repetida diversas vezes, seja com vistas à criação de espetáculos do Oficinão, seja de outras formas.

Atualmente, o panorama da dramaturgia na cidade tem se ampliado e muito se deve às iniciativas pioneiras do Galpão. O teatro belorizontino tem conquistado representatividade cada vez maior e grande parte das produções contam com textos dramáticos desenvolvidos dentro do próprio grupo, ou seja, os dramaturgos, em geral, estão vinculados a coletivos, o que viabiliza ainda mais o aperfeiçoamento da escrita, seja ela textual ou cênica. Em decorrência disso, novos projetos encarregam-se de fomentar a criação e a divulgação de textos para teatro, ganhando espaço e público crescentes na cidade.

Portanto, é significativo que, em 2014, o Cine Horto abra as portas para sediar uma iniciativa criada fora dele, o Ateliê de Dramaturgia, conduzido por Vinícius Souza e Assis Benevenuto. Significativo porque muitos dos que fazem teatro e dramaturgia hoje em Belo Horizonte nasceram ou desenvolveram-se artisticamente sob a égide do Galpão, e são eles que agora retornam, propondo novos olhares e novas escutas.

Assis e Vinicius atuam como dramaturgos, entre outras funções relacionadas ao teatro. Os Ateliês de Dramaturgia que têm promovido tomam como principal referência o modelo francês e nosso diálogo começou justamente por esse motivo: uma troca de experiências e de bibliografia acerca do tema. Para minha pesquisa de doutorado arrisquei uma apropriação antropofágica do material francês, ao propor uma escrita que nascesse da interação com as artes visuais. Os mineiros trilharam outros e variados caminhos e, em agosto de 2014, nossas pesquisas puderam encontrar-se ao vivo, quando fui convidada para as atividades de abertura do Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto.

Esse encontro será abordado na próxima postagem do blog. Apareçam!



Seguem os links do projeto Janelas de Dramaturgia. Criado e coordenado por 
Sara Pinheiro e Vinícius Souza,  objetiva a  discussão, o estímulo e a discussão 
de dramaturgia contemporânea em BH:
http://janeladedramaturgia.wordpress.com
https://www.facebook.com/janela.dedramaturgia



segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Ateliê Intensivo de Memórias e Ficção – Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa / Grupo Pontos de Fiandeiras


Foto: Rosimara Rampazzo


Entre o final de agosto e o começo de setembro últimos, o grupo de teatro Pontos de Fiandeiras promoveu no espaço do Museu de Santo André Dr. Octaviano Armando Gaiarsa o Ateliê Intensivo de Memórias e Ficção, sob minha responsabilidade. A iniciativa fez parte da ocupação Alinhavando pontos da memória andreense, que o grupo tem feito no local desde abril desse ano, graças ao edital do Proac para Difusão de Acervos Museológicos.

Dirigido a iniciantes na escrita, o Ateliê foi apenas uma das várias ações propostas. Paralelamente a ele, ocorrem apresentações do espetáculo Ponto segredo. Primeiros fios para escolas e público em geral; uma exposição com visitas monitoradas cujo tema é o trabalho no ABC paulista, além de encontros, palestras e bate-papos acerca da memória da região – foco de pesquisa da equipe atualmente.

Ao todo, o Ateliê contou com seis participantes que, durante oito encontros, criaram textos a partir da memória pessoal e também a partir do acervo do Museu e da Livraria Alpharrábio. No primeiro módulo, as recordações de cada uma das escrevedoras brotou a partir de estímulos diversos e gerou narrativas,  depoimentos, poesias, invariavelmente compartilhados com o grupo e analisados a fim de gerar possíveis reescritas. No segundo módulo, fotografias e objetos referentes a pessoas desconhecidas foram os disparadores de diários, confissões e micronarrativas de ficção.

Todas as atividades foram permeadas por reflexões acerca do exercício da escrita, por análise de textos literários e teatrais, e também por observações relativas à técnica e aos recursos da própria língua. Igualmente importantes foram as discussões a respeito das fronteiras praticamente invisíveis entre o registro memorialístico e a ficção. Primeiro, pelo fenômeno da rememoração em si – permeado via de regra pelo esquecimento, pela seleção ou pela modificação de fatos e impressões de acordo com fatores os mais diversos. Segundo, porque o texto, mesmo sob o rótulo de não-ficção, para que apresente uma qualidade dita literária, deve lançar mão de estratégias que lhe acrescentarão, eventualmente, elementos ficcionais. Entre o fato e a narrativa do fato flui o rio caudaloso do tempo, das emoções, das interpretações, das intenções e, talvez mais do que tudo, do desejo de seduzir o leitor.

Agradecemos às equipes do Museu e da Livraria Alpharrábio pela acolhida.
Que o Ateliê frutifique!


Mais informações sobre o projeto desenvolvido no Museu
podem ser encontradas no blog:

http://alinhavandopontos.blogspot.com.br

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

"Umberto Magnani, um rio de memórias" - Introdução ao livro





Quando fui convidada a escrever mais um perfil para esta coleção Aplauso, ouvi a sugestão: “Por que você não escolhe o Umberto Magnani? Ele é um ótimo contador de histórias”. Aceitei a idéia e é com imenso prazer – e dificuldade! – que me ponho a escrever esta Introdução.

Prazer em dar o meu depoimento pessoal sobre ele, afinal, foi simpatia à primeira vista. Dificuldade pelo fato de haver múltiplos Umbertos no Umberto Magnani. Lembram do Mário de Andrade? “Sou trezentos, sou trezentos e cinquenta”, o poeta traduziu-se, um dia. Pois este verso poderia muito bem traduzir o Magnani. Trezentos foram os trabalhos em que atuou como ator; cinqüenta, as funções por ele exercidas fora dos palcos e das telas. Interpretar e saber contar causos são apenas duas das artes desse auto-denominado ítalo-caipira.

Procurei adequar o melhor possível suas narrativas à linguagem escrita, na tentativa de expressar o vigor, a emoção e o humor com que ele tempera cada uma delas. Lágrimas ao falar dos pais e da infância; ética ao tratar de colegas e trabalhos realizados; humor ao se lembrar tanto das aventuras quanto dos tempos difíceis – lição que ele diz ter aprendido em sua terra natal.

Por falar nisso, você conhece Santa Cruz do Rio Pardo? Se conversar, por alguns minutos que sejam, com Umberto Magnani, será como se você tivesse nascido naquela cidade do interior paulista. Se conversar um pouco mais de tempo, vai começar a desconfiar de que ela não existe, que se trata de uma Pasárgada, de uma Canaã – cidade imaginária de paisagens idílicas, povo hospitaleiro, comida deliciosa e farta. A terra natal o marcou de tal modo que, na hora de escrever o livro, usei o rio como fio condutor das memórias e das reflexões.

Mas nem só de nostalgia vive e fala Magnani. Conheço poucos artistas com a sua consciência, sua ação em prol do coletivo, sua paixão pelo que faz. Umberto transita, sem maiores problemas, por teatro, cinema, televisão, entidades de classe, produção, magistério, administração, trabalhos voluntários. E é de uma humildade inacreditável que, certamente, se fará notar nas linhas e entrelinhas deste trabalho.

Dentre as fontes por mim consultadas para a elaboração do livro, destaque-se o primoroso trabalho de Ilka Marinho Zanotto, Mariângela Alves de Lima, Maria Thereza Vargas e Nanci Fernandes, organizadoras do volume dedicado à Escola de Arte Dramática, na coleção Dionysus, publicada em 1989 pela antiga FUNDACEN. Outra iniciativa, fundamental aos pesquisadores de teledramaturgia, é o site www.teledramaturgia.com.br, capitaneado por Nilson Xavier. Finalmente, para alguns dados históricos, recorri ao livro Coronel Tonico Lista: o perfil de uma época, de José Ricardo Rios, conterrâneo do ator.

Magnani costuma dizer que escolhe seus projetos artísticos, principalmente, pelo “clima das coxias” - para que um trabalho dê certo é preciso se dar bem com os colegas, participar de um ambiente divertido e ameno por trás das câmeras ou das cortinas do palco. Partilho com ele essa característica e afirmo que as “coxias” deste livro foram as melhores possíveis. As entrevistas e incontáveis conversas ao telefone foram as mais divertidas. Quando conheci sua mulher, Cecília, completou-se a simpatia que, espero, “seja o começo de uma grande amizade” – parafraseando um dos filmes preferidos do ator.

Lançamento do livro - Mostra Internacional de Cinema - SP 2004
Foto: Lina de Abreu


Para baixar gratuitamente o livro completo em pdf, acessar:
http://livraria.imprensaoficial.com.br/umberto-magnani-um-rio-de-memorias-colec-o-aplauso-perfil.html



segunda-feira, 1 de setembro de 2014

"Luís Alberto de Abreu : um teatro de pesquisa" - Apresentação do livro


Luís Alberto de Abreu, um teatro de pesquisa
Editora Perspectiva


            No ano de 1999 Rubens José de Souza Brito, então docente da UNICAMP, defendia sua tese de doutorado pela ECA-USP, sob orientação do professor Jacó Guinsburg. O objeto de sua pesquisa era a dramaturgia de Luís Alberto de Abreu, seus processos e configurações. Para isso analisou o conjunto de peças do autor, de quem acompanhou a trajetória desde os tempos amadores, traçando um panorama que, a partir dali, tornou-se uma referência para qualquer estudo sobre o assunto. Tanto que Rubinho, como era conhecido pelos amigos e alunos, era procurado como orientador sempre que alguém se dispunha a pesquisar algum aspecto da obra do dramaturgo.

            Como decorrência da tese veio o convite para que preparasse uma edição das Obras Selecionadas para a Editora Perspectiva. Ele deu início ao trabalho, mas não teve tempo suficiente para levá-lo adiante devido à morte repentina em 2008. O presente volume é, portanto, a concretização de seu projeto tão caro e coube a mim retomar sua condução.

Decidi, então, rever com Luís Alberto de Abreu a listagem de peças a serem publicadas. De um total de mais de 50 textos, o autor selecionou 14 que abarcam o período que vai de 1982 a 2010. Eles foram divididos em quatro áreas, definidas pela pesquisa que envolvem. A primeira delas, com o maior número de obras, é a de comédia popular brasileira. Foi iniciada por Abreu e Ednaldo Freire e levada a cabo junto à Fraternal Cia de Arte e Malas-Artes, com catorze textos escritos ao longo de mais de dez anos de trabalho. Baseado em estudos de Mikhail Bakhtin, Luís da Câmara Cascudo, Amadeu Amaral e Cornélio Pires, o grupo empreendeu uma pesquisa de tipos já fixados no imaginário da cultura brasileira e retrabalhou-os segundo princípios da comédia popular. Dessa reelaboração nasceram personagens-tipo que figuram em diversas peças da Companhia. São eles: João Teité, Matias Cão, Mateúsa, Mané Marruá, Benedita, entre outros. Figuras com perfil definido e já conhecido do público, justamente por fazerem parte da cultura popular, e que, a cada peça, encontram oportunidade para criarem novas intrigas e se safarem delas. Burundanga, a revolta do baixo ventre (1994), Sacra folia (1996) e Auto da paixão e da alegria (2002) pertencem a essa vertente de pesquisa. As duas primeiras são o que o autor denomina de comédia de representação, a terceira contempla já uma investigação da forma narrativa.

            Essa investigação formal está presente também nas outras duas comédias que completam o conjunto: Till Eulenspiegel (1999) e Stultifera navis, a nau dos loucos (2001). Pertencem igualmente ao projeto de Comédia Popular Brasileira, porém visam à retomada de personagens da cultura universal e seu tratamento à luz da cultura e da realidade nacionais. O encontro entre os fictícios Peter Askalander, nórdico, e Pedro Lacrau, um índio brasileiro, é a situação central de Stultifera navis, a nau dos loucos. Nessa outra peça do projeto de comédia popular, Abreu intentou escrever um texto de inspiração cinematográfica, um filme verbalizado, como definiu: grandes cenas épicas com afundamento de navios, tempestades em alto mar e uma radicalização da narrativa.

            Para a elaboração de Till, Abreu tomou como base um volume de histórias sobre as aventuras de um herói popular alemão. Embora localize a ação na Europa da Idade Média e crie uma trajetória paralela à do herói, a de três cegos à procura do caminho para Jerusalém onde esperam encontrar finalmente descanso, fartura e justiça, Abreu estabelece clara relação com o Terceiro Mundo e seus desvalidos. Ao final os desvalidos da peça seguem, liderados pela figura alegórica da Consciência de Till, rumo ao encontro de uma utopia possível.

Luís Alberto de Abreu e o professor Jacó Guinsburg, editor do livro
(foto: Elaine Perli Bombicini)

           
            A segunda área de pesquisa é a da forma narrativa. Embora em praticamente todos os seus textos Abreu lance mão dos recursos da narrativa épica, nas quatro peças aqui selecionadas essa elaboração se deu mais especificamente. Em Bella Ciao (1982) os problemas de configuração levantados pelo conteúdo levavam o autor à busca de uma forma que pudesse conter satisfatoriamente a saga de uma família de imigrantes italianos, desde sua terra natal no início do século XX até a queda do Presidente Getúlio Vargas em 1945. Essa forma foi encontrada principalmente no contato com as obras de Bertolt Brecht. Vemos sua influência desde o peso dado aos aspectos políticos da trajetória, passando pela construção das cenas que encerram todas uma unidade, que pode ser identificada por um título (recurso que Abreu continuará adotando em praticamente todos os textos seguintes), e pela figura do Ponto, que atua como narrador. 

            Passados quatro anos de Bella Ciao e tendo encenado mais três textos nesse intervalo, Abreu iniciou a pesquisa para a elaboração de Lima Barreto, ao Terceiro Dia (1986). O projeto consistia em elaborar uma trama que suportasse aspectos biográficos do escritor e fragmentos de sua obra mais famosa, O triste fim de Policarpo Quaresma. A vastidão do material representava outro desafio formal para o dramaturgo. Dessa vez, ao contrário do que ocorrera em Bella Ciao, quando Abreu ia resolvendo os problemas à medida que ocorriam, o autor pretendeu estabelecer primeiro a estrutura. Quis intencionalmente trabalhar uma concepção formal que pudesse organizar passado, presente e ficção, e que possibilitasse interferências mútuas. Vencido o desafio da forma levou-se adiante a escrita do texto.

Borandá, auto do migrante (2003), encontra Luís Alberto de Abreu com vinte e três anos de carreira e o domínio da forma narrativa. Os desafios, nesse caso, pertenceram à esfera do conteúdo. Desde a peça O rei do Brasil (1991) o dramaturgo precede a escrita do texto propriamente dito pelo cannovaccio. Trata-se de um roteiro de ações, como os que eram seguidos pelos atores da commedia dell'arte italiana, e que contém o enredo e o detalhamento das ações em cada uma das cenas. Um quadro esquemático de todo o texto. Não foi diferente com Borandá. Abreu criou um roteiro de ações que trataria de uma releitura de Macunaíma do ponto de vista do migrante. Seria uma história fantástica, com tratamento mítico e assim foi entregue à Companhia para que começassem as improvisações. Paralelamente a isso os atores realizavam entrevistas com migrantes de diversas origens, com o objetivo de dialogar com as improvisações e o texto. Ocorre que, à medida que as entrevistavam chegavam às mãos do dramaturgo constituíam-se material potente o bastante para modificar a primeira estrutura imaginada.

O desafio foi, portanto, reorganizar o cannovaccio. Alterar a forma já definida para que abrigassem o novo material. A solução encontrada foi a narrativa de duas sagas entremeadas pela história fantástica original. Abreu procurou em Borandá um aprofundamento no estudo dos personagens narradores e o trabalho com o que ele chama de velocidade do épico. Com isso criou narradores capazes de interpretar homens ou mulheres, desfazendo a limitação de gênero, e propôs cenas mais curtas, que produzissem uma sucessão de imagens sob o comando de um narrador principal, a dirigir a memória – influência dos procedimentos utilizados pelo dramaturgo norte americano Thornton Wilder no texto Nossa Cidade.


O dramaturgo e a crítica Ilka Marinho Zanotto, prefaciadora do livro
(foto: Elaine Perli Bombicini)


 Em 2006, com Memória das Coisas, dá-se a pesquisa do fluxo da memória. Como organizar um material que brota em progressão geométrica? Um homem se vê diante de um arco no centro da cidade e ele tenta se lembrar a que ele se refere. Nesse cavoucar recordações, que se torna o eixo do espetáculo, da própria ruína arquitetônica brotam personagens-lembranças que, por sua vez, se lembram de outros, e tudo se torna matéria de representação. A essa altura a chamada carpintaria teatral não importa mais a Luís Alberto de Abreu, que se preocupa agora com a consistência da cena. Há uma liberdade nessa organização dramatúrgica que permite que um personagem assuma a narrativa se tem algo importante a dizer. Dispensa-se a trama perfeitamente articulada em nome da unidade maior constituída pela multiplicidade da memória.

Curiosamente Memória das Coisas pertence ao ciclo de comédias populares da companhia. Da comédia, porém, resistem os dois palhaços e o diretor, que beiram o patético. O diretor não possui mais o controle da situação. Diferente da personagem de Thornton Wilder, ele se desespera com a amnésia do protagonista, com a autonomia das personagens e o fluxo das lembranças, tentando encontrar um sentido para transmiti-lo ao público, tornado testemunha. Podemos identificar, na orquestração do tema, das ações e das figuras, influências de Tadeuz Kantor e Pirandello – citados no próprio texto.

            No terceiro bloco encontram-se dois textos resultantes da pesquisa da forma poética, A Guerra Santa (1991) e O Livro de Jó (1995). A eloquência e o ritmo da poesia foram a saída encontrada por Luís Alberto de Abreu às circunstâncias em que se encontrava a dramaturgia naquele momento. Segundo o autor, as reflexões políticas geradas nos anos 1970 já não encontravam mais respaldo no público.  Seu texto O Rei do Brasil, que propunha uma discussão cultural do país, foi um fracasso de bilheteria. A isso veio se somar o grande destaque conquistado pelos encenadores nos anos 1980 e a relativa crise da dramaturgia. Diante disso Abreu iniciou uma pesquisa formal na tentativa de recuperar o público, de sintonizar-se novamente com ele. Daí nasceu A Guerra Santa, texto resultante do projeto Maioridade 68 promovido pela FUNARTE e que foi buscar nas personagens e no ambiente d'A Divina Comédia de Dante Alighieri a metáfora dos ideais revolucionários.

            O Livro de Jó, baseado no texto bíblico, foi uma criação partilhada com o Teatro da Vertigem de São Paulo. Da parceria com o diretor Antônio Araújo uma outra pesquisa foi desenvolvida, desta vez processual. Os dois foram responsáveis pela sistematização inicial do chamado processo colaborativo e por divulgá-lo junto a outros grupos e escolas em diversos estados brasileiros. 

            Em relação à forma poética um outro texto, Francesca (1993), ainda inédito e inspirado em uma das passagens d'A Divina Comédia, completa a trilogia de peças que buscam na poesia uma forma de comunicação mais direta com o leitor/espectador. A partir dessas experiências, Abreu passou a utilizar a poesia como elemento de elocução nas peças seguintes, mesmo nas comédias. Um exemplo disso pode ser encontrado na fala do Anjo Gabriel ao anunciar o massacre dos inocentes em Sacra Folia.

            No final dos anos 1990 o dramaturgo iniciou uma pesquisa do teatro nô japonês. Seu objetivo era compreender como se articulava a estrutura daqueles dramas que comunicam diretamente ao público, quase sem a intermediação da encenação. Nascido na sociedade rural, o drama nô possui uma dramaturgia relativamente simples, baseada na forma narrativa e poética podendo lançar mão, inclusive, do canto e da dança. Foram esses elementos que Abreu utilizou, em todo ou em parte, na elaboração dos três textos que compõem o último conjunto dessas Obras Selecionadas – a pesquisa do teatro nô. O primeiro, Maria Peregrina, foi escrito em 1999 especialmente para a Cia Teatro da Cidade de São José dos Campos, em São Paulo. Para o mesmo grupo, escreveu em 2010  Um Dia Ouvi a Lua, baseado em músicas sertanejas e em sua mais recente pesquisa das personagens heroínas. Nesses dois textos Abreu optou pela composição de um tríptico, pois, embora haja uma unidade temática e mesmo um fio condutor, são trabalhados três núcleos independentes. Caso diferente de Um Merlin, de 2002, escrito para a interpretação do ator Antonio Petrin e a direção de Roberto Lage. Essa obra contempla a pesquisa do herói sábio e pertence a um tipo de nô que tange os deuses ou entidades e a própria morte. Dessa vez o que Abreu preferiu aprofundar foram o registro poético e o narrativo, não tanto a estrutura nô.

 Ao longo do tempo a dramaturgia de Luís Alberto de Abreu dividiu espaço com a atividade pedagógica, que se desdobrou em palestras, coordenação de cursos e processos, oficinas e grupos de estudos. A prática em sala de aula e junto aos grupos, muitas vezes, levou o autor a sistematizar determinados conteúdos em forma de artigo. Por isso, à reunião das peças teatrais, seguem os textos teóricos do autor. Tratam-se de três artigos publicados em periódicos que se referem às pesquisas da narrativa, das personagens dramáticas e contemporâneas.

Noite de autógrafos na Livraria Alpaharrabio
(Foto: Lina de Abreu)
           
            A obra de Luís Alberto de Abreu, por sua vez, suscitou uma série de pesquisas acadêmicas. Selecionamos fragmentos de três delas para figurarem na terceira parte deste volume. O primeiro pertence à tese intitulada Dos Peões ao Rei, do professor Rubens José de Souza Brito, comentada no início desta apresentação. O segundo faz parte da dissertação de mestrado de André Carrico, Por conta do Abreu, defendida no Instituto de Artes da UNICAMP e que aborda a comédia popular na obra do dramaturgo. As três sagas que compõem Borandá foram objeto de estudo do terceiro trecho selecionado, que faz parte da dissertação Do Drama ao Fragmento: a questão da forma na dramaturgia contemporânea em São Paulo, de autoria de Cássio Pires defendida na ECA-USP em 2005. Outros trabalhos acadêmicos encontram-se relacionados ao final desse tópico e, se não foram selecionados para esta publicação, deveu-se tão somente a critérios de espaço.

            O mesmo se deu em relação aos registros da recepção crítica dos espetáculos. Muito foi escrito em jornais e outros periódicos impressos ou eletrônicos a respeito dos textos do dramaturgo. Procuramos apresentar aqui uma amostragem que levasse em consideração, além do conteúdo, alguns dos nomes que acompanham ou acompanharam a trajetória do dramaturgo em boa parte de seus trinta anos de profissão, completados em 2010.

            Dentre seus mais de cinquenta textos – desde o primeiro, Foi bom, meu bem? levado à cena em 1980, até o mais recente Nomes do Pai –  apenas um permanece inédito, o musical Francesca.  A atuação do autor se estendeu ao cinema, à televisão, às fábricas, a departamentos de cultura e, mais recentemente, a hospitais e centros de saúde junto ao Instituto Narradores de Passagem, do qual é o idealizador. Em todas as iniciativas, o que move Luís Alberto de Abreu é a pesquisa, seja ela unicamente da escrita, seja do diálogo com atores, diretores ou cineastas na construção da obra. Seja na dramaturgia autoral, seja em projetos nos quais esteja inserido. O presente volume oferece ao leitor uma parte selecionada dessas experiências.

            Agradeço à minha filha Lina pela ajuda no levantamento e digitação das críticas, à profª dra. Sílvia Fernandes e a Cristiane Layher Takeda pelas sugestões e pelo estímulo em relação à publicação. Ao Professor Jacó Guinsburg e a Luís Alberto de Abreu agradeço o privilégio de realizar este trabalho dedicado à memória do professor Rubens José de Souza Brito, de quem cito um trecho da tese ao finalizar esta apresentação:

“Como se vê, Luís Alberto de Abreu se sensibiliza pelos mais diferentes temas.
No centro de cada um deles, encontra-se o homem brasileiro,
flagrado não só em seus instantes de dor, de reflexão, de angústia e de luta,
mas também nos seus momentos de esperteza, alegria e riso.
Entre a razão e a emoção, entre a profundidade e a superficialidade,
entre o cômico e o trágico, e entre o trivial e o metafísico,
o dramaturgo vai compondo, cena a cena, não mais o brasileiro,
mas o próprio homem.”