sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte - Parte II


O artista plástico Eymard Brandão em seu ateliê em Nova Lima
Foto: Thiago Fernandes

Ao receber o convite para conduzir a abertura do Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, considerei propor uma atividade semelhante às que desenvolvi em minha pesquisa para o doutoramento. Sua base é o diálogo estreito da escrita com as artes plásticas, o que atesta a originalidade da proposta tanto quanto justifica, entre nós, o uso do termo Ateliê em vez do tradicional Oficina – um espaço de criação artística, proporcionada pelo contato com a materialidade da tinta na tela, da pedra, da palavra.

Considerei também o quanto seria motivador o trabalho com a obra de algum artista que eu mesma desconhecesse e, por esse motivo, cheguei a Eymard Brandão, mineiro de Belo Horizonte, nascido em 1946 e morador dos arredores da cidade. Tanto quanto os aspectos estéticos da produção, o que me fez decidir pelo seu nome foi a pesquisa atual, feita a partir de resíduos minerais que o artista transforma em matéria prima. Eymard tem registrado as mudanças e também o impacto ambiental causados pelas grandes mineradoras na paisagem de seu Estado, algo que considerei bastante sugestivo no campo da dramaturgia.


Obra de Eymard Brandão analisada pelo grupo

Assim, em linhas bastante gerais, depois da apreciação coletiva de uma obra feita pelo grupo, e da apresentação do artista, de parte do acervo e de suas inquietações, a primeira camada sugerida para reflexão foi quais são os resíduos com que opera o dramaturgo hoje? Resíduos de linguagem, de relações, de crenças e narrativas, por exemplo? Resíduos da própria forma de se fazer teatro ou se escrever para?

A segunda camada implicaria em analisar os resíduos referentes à geografia do grupo: com que resíduos de mineiridade trabalha-se agora? A modificação da paisagem interna mineira e seus reflexos na dramaturgia. Dito de outro modo, o que as Minas Gerais de hoje conserva daquilo que a caracterizou ou ainda caracteriza aos olhos do estrangeiro: religiosidade, hospitalidade, oralidade, boa mesa, literatura. O que disso tudo ainda é e o que já virou resíduo a ser trazido à cena?

O fato de o grupo constituir-se de dramaturgos já experientes, deu-me a liberdade de tornar ainda mais complexa a proposição, ao partir para uma terceira camada, a de minhas inquietações recentes acerca de dramaturgia e memória. Desse modo, a questão colocada disse respeito à elaboração do pensamento de personagens atravessados pela velocidade, pela imediatez e pela superficialidade atuais, assim como pela substituição acelerada de experiências que não chegam a constituir-se em memória propriamente dita, mas em impressões até certo ponto voláteis. Como se pode dar uma transmissão de experiência ou a comunicação entre essas figuras? Na tentativa de apresentar algo concreto com que se trabalhar essa articulação, sugeri uma passagem da bíblia, a da multiplicação dos pães e dos peixes, tradicional e amplamente conhecida (de pronta recordação), fechada em uma unidade de ação e de sentido, simples, clara e direta. Como cada personagem/narrador poderia recuperar e transmitir essa tal situação – ouvida, sonhada ou vivida?

Finalmente, foi sugerida um camada que dissesse respeito ao narrador, já que a proposta seria a da elaboração de um episódio narrado. Tal narrador seria definido não a partir das motivações internas de cada participante, mas de um contato com a realidade externa, abrindo espaço para o acaso na criação. Os dramaturgos teriam um tempo para percorrer o entorno do Galpão Cine Horto e, a partir de observação atenta, identificar alguma pessoa capaz de inspirar um  personagem encarregado da manifestação.

Submersos em todas essas camadas, acrescidas dos elementos levantados na apreciação coletiva da obra, aos dramaturgos foi dado um tempo para que criassem uma narrativa breve, centrada no personagem escolhido e que contivesse, de algum modo, a memória da passagem bíblica.

Brotaram daí onze materiais textuais atravessados pelas artes de Eymard Brandão; por reflexões acerca de memória, geografia e pertencimento; pelos materiais residuais de forma e conteúdo, assim como pelas inquietações da cena contemporânea e daqueles que fazem o teatro (de) hoje.


Assis Benevenuto, Marcos Coletta (Galpão Cine Horto), eu, Vinícius Souza e Leonardo Lessa (Galpão Cine Horto)
Inhotim - agosto de 2014

Agradeço ao Vinícius Souza e ao Assis Benevenuto pelo convite, pela imersão e pela diversão; à equipe do Galpão Cine Horto pela recepção invariavelmente calorosa e, sobretudo, aos dramaturgos do projeto, pelo generoso "sim".

Boas escritas!



para saber mais sobre Eymard Brandão e seu trabalho, acessar:
http://www.eymardbrandao.com.br

2 comentários:

  1. Nada mais gostoso para quem acompanha, perto e longe, quando o filho parido começa a caminhar pelas próprias pernas, trazer amiguinhos e ainda sair para passear. É uma alegria ver que o trabalho sério, conquistado por esforço e dedicação, ganha espaço e reconhecimento; mais importante ainda, ver resultados! Ver a criatividade brotar é algo misterioso, diria em alguns contextos, pura alquimia! Celebremos!! Abraços pra todos dessa jornada!! :-) Elaine Bombicini

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  2. Um encontro bastante rico, Elaine, com essa turma. Ressoará em outros trabalhos meus e espero que nos deles também! Beijos!

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