quarta-feira, 11 de março de 2020

Ateliê de Dramaturgia do Descarte – Sítio Cultural Alsácia


Iniciei a pesquisa do que denominei Dramaturgia do Descarte em 2015, a partir da interlocução entre dramaturgia e artes plásticas. A princípio, chamou-me a atenção o descarte em grandes dimensões e sua apropriação “dramática” por artistas visuais, como pode ser conferido nessa postagem. A seguir, a exposição “When the courtain never comes down”, no American Folk Art Museum de Nova York, levou-me a refletir sobre a apropriação e a reconfiguração de descartes menores e seus equivalentes numa dramaturgia já constituída, algo que pode ser visto nas postagens sobre os artistas RockNRoll,  Eijiró Miyama e Papa Palmerino, sempre associados a autoras/es de teatro.


A ideia principal é que, assim como a sociedade do consumo gera um excesso de materiais descartados a serem reapropriados e ressignificados por artistas plásticos, os inúmeros descartes da sociedade da informação geram literatura e dramaturgia.


Participantes durante intercâmbio de materiais 

Entre setembro e outubro de 2019 conduzi um Ateliê de Dramaturgia do Descarte no Sítio Cultural Alsácia, em Ribeirão Pires. Foram três encontros onde pudemos discutir textos teóricos, ler e analisar textos cuja poética vale-se do arranjo de descartes e, por fim, coletar materiais de fontes diversas e arriscar uma proposta formal com eles.

Dentre a referências teóricas, tomamos da modernidade pelo olhar de Walter Benjamin a ideia do historiador como “trapeiro” – aquele que recolhe e junta os retalhos/acontecimentos e compõe com eles a História. De Jean-Pierre Sarrazac tomamos o conceito de autor-rapsodo e os estudos de coralidade e de multiplicidade de vozes no teatro, bem como os recursos compositivos da dramaturgia contemporânea.

Usamos a técnica de world café para a partilha de materiais



A fruição e o estudo de poéticas do descarte contou com exemplos recolhidos em Arthur Azevedo, Ana Cristina César, Clarice Lispector, Bob Perelman, Lívia García-Roza, Tarso de Melo e Manoel de Barros. Na dramaturgia, peças de Peter Handke, Heiner Müller, Ana Luísa Santos e Victor Nóvoa.

Participantes do Ateliê

Foi proposto como atividade prática que cada participante buscasse no dia-a-dia descartes de seu interesse nas mais diversas fontes – redes sociais em geral, transporte coletivo, aplicativos de mensagens, buscas na internet etc – e que montasse um dossiê.


O material seria partilhado em grupo e se tornaria de uso comum. A partir de certos critérios de seleção, ele seria depurado e resultaria em um projeto coletivo de dramaturgia cujos recursos poderiam ser, entre ouros, colagem e montagem, justaposição ou sobreposição, fragmentação, repetição, simultaneidade, sequenciamento.

Durante o Ateliê, compartilhei com o grupo o processo de escrita da peça "Futebol Arte", de minha autoria, cuja premissa é a dramaturgia com descartes pré e pós-eleições de 2018. Na próxima postagem do blog, apresentarei o memorial descritivo da peça, que terá leitura cênica realizada no Sesc São Caetano em 27 de março.

* * *

Agradeço a William Costa Lima e Marc Strasser por acolherem o Ateliê no Sítio mais uma vez e a todes participantes pelas trocas, fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa. 

Adélia Nicolete




segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

"No palco com Lélia Abramo" - Consultoria Dramatúrgica


Cartaz do espetáculo

"No palco com Lélia Abramo" estreou! Um solo teatral concebido e interpretado por Andréia Barros e digirido por Antonio Januzelli de tanto me orgulho participar como consultora de damaturgia! 

Parece que foi ontem que Andréia comentava estar às voltas com Lélia Abramo para um solo orientado pelo Janô, as paredes da copa forradas de cartolina com elementos da dramaturgia. Já naquele momento me interessei pelo trabalho. Andréia me mandou uma primeira versão do texto para ler, eu teci alguns comentários. Isso foi em 2015! E de repente aqui estamos nós com o esptáculo vivo e pulsante, com um livreto tão bem elaborado pelo professor Rodrigo Morais Leite a compartilhar processo e aporte teórico com o público.



Andréia Barros em "No palco com Lélia Abramo"
(Foto: divulgação)


Parece que passou muito rápido, mas a gente sabe que não foi bem assim. Sabemos o que aconteceu nesses cinco anos – e eu falo tanto do ponto de vista processual do trabalho, quanto da história desse país. Não foi fácil e não passou depressa. Ao contrário, muitas vezes achamos que não conseguiríamos chegar inteires até esse momento. Por isso é muito bom fazer este registro.

Quando Andréia e Janô escolheram Lélia cinco anos atrás, não faziam ideia do quanto seria importante trazê-la de volta para a cena hoje. Do quanto fazer teatro se mostraria verdadeiramente um ato político. Coragem, constância, perseverança, um ato de resiliência, de re-existência cotidiana – tal como o exemplo que nos foi deixado por Lélia Abramo.




Andréia Barros, Antonio Januzelli, Claudio Mendel e eu
em uma manhã de ensaios no estúdio de Janô

Ingressei oficialmente no projeto bem na reta final como consultora de dramaturgia. Em linhas bastante gerais, a função de uma consultora ou assessora dramatúrgica é trazer um olhar especializado e, mais que tudo, um olhar de fora do processo. A partir desse olhar e do exame do material e do caminho percorrido, faz-se uma análise, um estudo e, por fim, uma ou várias sugestões de caminhos para o trabalho. As decisões são tomadas pelo coletivo com base nos objetivos da proposta e na experimentação.

Meu olhar como consultora deu-se sobre várias instâncias: a Companhia Teatro da Cidade, o projeto em si, o pré-texto e as cenas já desenvolvidas. Janô pediu que em vez de uma peça pronta, eu trouxesse a princípio o que ele chama de mapa-mundi – um planisfério da ação, onde os elementos pudessem ser flexíveis, recambiáveis. 

Conheço cannovaccio ou roteiro de ações e gosto de ter uma visão pictórica das peças antes de escrevê-las. Um mapa-mundi dialogaria com tudo isso e lá eu pude, então, expor minha visão distanciada e ao mesmo tempo muito próxima. 

Apresentei um plano estrutural com passagens de tempo, fases da vida, pontos de virada, atmosferas, ritmo, etc. Tudo a partir dos objetivos da atriz e do diretor, do texto enunciado que criaram ao longo dos ensaios, da pesquisa biográfica, da cena, dos comentários e das experiências nos ensaios abertos. Nas imagens abaixo, uma ideia do que apresentei em três camadas superpostas:






Depois de aprovado o mapa-mundi, pude seguir com as sugestões para o texto e para a cena, na forma de uma peça escrita a ser constantemente revista e alterada.

Nesse sentido, a assessoria ou consultoria dramatúrgica implica em um exercício de desapego. Diferente de autoria, a consultoria está a serviço do diretor e da atriz, do projeto. Ela não dispensa a dramaturgia autoral, que pode ocorrer normalmente: pode haver consultoria dramatúrgica em trabalhos que contem com profissionais da dramaturgia. 

No caso de “No palco com Lélia Abramo”, Andréia e Janô exerceram a chamada “função dramaturgia” (sobre isso ver a postagem "O que é a dramaturgia" - fragmentos de Joseph Danan ). Exerceram também o dramaturgismo – a pesquisa que envolve a produção de uma obra teatral. Minha atuação deu-se no terreno da dramaturgia enquanto especialidade.

Em outras palavras, a partir do eixo temporal – a noite chuvosa que Andréia passou em casa de Lélia – sugeri uma nova estrutura que, inspirada pela atmosfera da chuva e do passar das horas, contemplasse a biografia de Lélia Abramo e, em alguns pontos, tangenciasse a da própria Andréia. Assim, temos um período inicial mais leve, no final da tarde, da infância e da juventude; uma fase da noite tempestuosa e da guerra vivida na Itália, e uma terceira, da madrugada e do estio, que corresponderia ao retorno ao Brasil e à atuação artística e política de Lélia. Os intervalos seriam marcados por música e alguns objetos e o início seria trabalhado com poética explícita, ou seja, abordaria o público em sua chegada e apresentaria o projeto, suas motivações e um pouco do espetáculo a ser visto.

Antonio Januzelli durante ensaio
(Foto: Adélia Nicolete)

Durante todo o tempo as propostas da dramaturgia foram atravessadas pela atriz e pelo diretor. Fiz o possível para valorizar e tornar confortável a atuação de Andréia Barros, para compreender e atender às propostas de Janô.


Janô e Andréia durante ensaio
(Foto: Adélia Nicolete)


Em dezembro, a Companhia lançou o livreto "No camarim com Lélia Abramo" em São José dos Campos durante um bate-papo com a atriz, o diretor, o crítico Valmir Santos e eu. Recomendo a leitura do trabalho minucioso do professor Rodrigo Morais Leite, que pode ser acessado nesse link.

Num momento como o que vivemos, quando a educação e a cultura são desmerecidos cada dia mais, projetos como esse tornam-se faróis. Estou feliz com a conclusão do processo e com a qualidade do trabalho. Aprendi muito mais do que contribuí. Obrigada, Andréia e Janô. Obrigada Cia Teatro da Cidade de São José dos Campos. Evoé Lélia Abramo!

Adélia Nicolete