A
partir de meados do século 19, centenas de milhares de pessoas deixaram seus
países rumo aos Estados Unidos, em busca de melhores condições de vida. A
maioria delas, fugindo da fome, das guerras e da miséria, passava semanas no
porão dos navios, alimentada pela esperança de conferir de perto as ruas
pavimentadas de ouro de que tanto ouviam falar.
Desembarcados
em Ellis Island, próxima a Manhattan, os estrangeiros passavam por uma inspeção
burocrática e sanitária, capaz de mandar de volta os que estivessem com a saúde
ou a documentação irregulares. Os aprovados tratavam de procurar trabalho e
abrigo, às vezes, em um mesmo local: os cortiços (tenements) espalhados,
principalmente, em Lower East Side.
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Conjunto de cortiços em Lower East Side |
Quem
dispunha de algum dinheiro podia alugar um apartamento num dos diversos prédios
de até cinco andares espalhados pela região. Sem elevadores, o preço
diminuía na proporção dos andares. Nos primeiros tempos, as latrinas ficavam no
quintal e não havia água encanada, apenas um poço que atendia a todo o prédio
ou a vários deles. Sem iluminação elétrica, os corredores eram escuros e, com
apenas uma janela, na sala, os moradores tinham de recorrer a lampiões ou
velas. Os banhos semanais eram na bacia ou numa pia – mesmo local em que eram lavadas as poucas roupas, estendidas na área comum. No frio, muito frio. No
calor, o abafamento obrigava os moradores a dormirem na cobertura do edifício,
para alegria das crianças.
As
famílias numerosas, de até 12 pessoas, ocupavam uma sala, uma cozinha e um
quarto minúsculo, geralmente destinado ao casal e ao(s) bebê(s). Durante o dia
a sala era usada como área social ou como oficina de trabalho e, à noite, como
dormitório. Tais oficinas, funcionando
em condições insalubres e faturando muito pouco, abasteciam o mercado crescente
de roupas e acessórios, localizado na área nobre da cidade.
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Família na sala/dormitório do apartamento |
Os
órfãos, os desempregados ou os trabalhadores mais pobres dormiam nas ruas ou em
alojamentos específicos para isso, a preço baixo. Ali, assim como nos cortiços,
as condições sanitárias e a qualidade de vida eram péssimas. Tanto que, a certa
altura, os governantes e a população abastada viram-se obrigados a assumir a
existência do Lower East Side e a providenciar o saneamento gradativo do
bairro, a fim de evitar que possíveis epidemias atingissem os palacetes da
região norte.
O
segundo filme da trilogia O poderoso chefão, de F. Ford Copolla, ilustra
de modo exemplar tanto a chegada dos imigrantes ao porto, a inspeção e a
eventual quarentena, quanto a vida nos cortiços e no bairro dos imigrantes.
Alemães, chineses, judeus, portoriquenhos, africanos, poloneses, irlandeses,
russos, italianos habitavam, no início do século 20, o quarteirão mais povoado
de uma região cuja densidade demográfica era a maior do mundo. É nesse
quarteirão e em um daqueles cortiços que está instalado, desde o final dos anos
1980, o Tenement Museum de Nova York.
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O comércio de rua era intenso |
Um
dos principais objetivos de sua idealizadora, Ruth Abram, foi o estudo da
identidade do homem americano, marcadamente influenciado pela multiplicidade de
culturas que lhe deram origem. Face ao grande número de imigrantes legais e
ilegais que continuam a chegar na cidade, a historiadora, preocupada com a
intolerância e suas manifestações, considerou a fundação de um museu capaz de
atender não só aos aspectos educativos, informativos e históricos, mas também à
discussão de assuntos ligados à problemática da imigração. Assim, além de um
perfil, digamos, turístico, a entidade oferece palestras, aulas de inglês para
estrangeiros, auxilia na regularização de documentos e presta assistência em
diferentes níveis. Seu slogan é “Revealing the past. Challenging the
future” e resume a ideia de um contato com o passado que seja capaz de propor
novas e melhores maneiras de se lidar com situações semelhantes, hoje e no
futuro.
Um
dos recursos utilizados pela equipe do museu para um contato sui generis com
o passado é o teatro. Dentre os diversos
roteiros de visita oferecidos, um deles é uma entrevista com uma “moradora” do
cortiço, Victoria Confino, menina de 12 anos, cuja família imigrou da Turquia
para os Estados Unidos em 1913. Mas, para que esse contato seja o mais “real”
possível, é preciso que todos os visitantes interpretem igualmente o papel de
estrangeiros, recém-chegados ao país, na época das grandes imigrações.
Os
interessados na visita ocupam uma das salas do museu. O guia começa por
informar que a jovem, uma judia, não fala muito bem o inglês, mas é muito
esperta e capaz de responder a qualquer pergunta a respeito de sua terra, da
viagem de navio, da chegada, da vida cotidiana e muitos outros assuntos. Como
está sozinha no apartamento, ele avisa que não será fácil receber estranhos.
Por isso, propõe ao grupo representar uma família à procura de vaga no
cortiço. Nesse momento, cada um deve escolher que papel irá assumir diante de
Victoria – pai, mãe, filho, filha, sobrinho, neto, etc. –, a nacionalidade do
grupo e, de acordo com o papel, que tipo de pergunta faria à anfitriã. Um
ensaio é feito, descartando perguntas sobre televisão, computadores, por
exemplo, que não existiam naquela época. O guia estimula diferentes
possibilidades de abordagem, enquanto assume, ele mesmo, o papel de professor
de inglês da menina.
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Cozinha/quarto de apartamento reconstituído
Tenement Museum
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De
posse de seus personagens, o grupo se encaminha para o número 97 da rua
Orchard, antigo cortiço inteiramente reconstituído pelos historiadores. Nesse
momento, ocorre uma viagem no tempo, um contato singular com o passado, como
vislumbrou Ruth Abram. Ao entrarmos pelo portão dos fundos, notamos o quintal
minúsculo e de terra batida e imaginamos seu uso. Subimos o primeiro lance de
escadas e caminhamos em silêncio pelos corredores escuros e apertados do prédio,
divididos entre o que somos (cidadãos visitantes do século 21) e o que iremos
representar (estrangeiros, desterrados, de uma década longínqua). A espera no
corredor escuro é fundamental para que possamos respirar a diferença entre o
nosso modo de vida e as condições daqueles homens e mulheres.
O
guia bate à porta e se anuncia como
professor. A menina resiste em abrir a porta, já que as aulas costumam ser na
escola. O mestre insiste, dizendo que trouxe uma família com ele, crianças
inclusive, insegura, precisando de orientação. Victoria cede e abre a porta,
recebendo-nos com seu sotaque carregado e uma gentileza sem igual. A personagem
– interpretada por uma atriz de cerca de
30 anos, usando vestido, avental e um lenço cobrindo a cabeça – apresenta o
apartamento, responde a todas as perguntas, mas também é curiosa, quer saber
quem somos, de onde viemos, como foi a viagem, estimulando a que os visitantes
se coloquem no lugar daquelas tantas pessoas assustadas, desorientadas e
famintas, como a jovem e sua família, quando aportaram na América. O jogo é
concluído com a preocupação de Victoria em relação à chegada dos pais: eles a
proibiram de abrir a porta a estranhos. Ela nos leva até o corredor e deseja
boa sorte em nossa nova vida.
É
muito curioso que um jogo teatral seja proposto num museu da imigração. Viola
Spolin, a criadora desse tipo de procedimento com atores e não-atores, iniciou
sua vida profissional justamente com imigrantes, em Chicago. Ao trabalhar em um
programa assistencial cuja proposta era o resgate e a conservação das
manifestações culturais de cada povo, Spolin entrou em contato com jogos,
brincadeiras, cantos e danças de diversos países, o que, sem dúvida, teve um
papel significativo em seu futuro trabalho com os jogos teatrais.
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Sala/quarto de apartamento reconstituído
Tenement Museum
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O Museu dispõe de um ótimo site. Clicando
em “Play” e, depois, em “Immigration game”, por exemplo, podemos simular a imigração
realizada há mais de um século, com a ajuda de Victoria Confino. Divirtam-se.
Publicado originalmente em
http://papelferepedra.blogspot.com.br/