segunda-feira, 17 de novembro de 2014

'Quem será contra nós...", peça teatral de Carlos Rosa - Apresentação do texto



Conheci Carlos Rosa no começo do século, como ator da Cia Teatro da Cidade de São José dos Campos. O espetáculo, Maria Peregrina, era a primeira parceria do grupo com o dramaturgo Luís Alberto de Abreu. Em seguida, escrevi eu mesma um texto em que o Carlos atuou, As serpentes que roubaram a noite, baseado no livro homônimo de Daniel Muduruku. Entre uma e outra tive o prazer de conviver com ele e compartilhar do seu talento para a comédia, mesmo fora da cena. Notar seu raciocínio rápido, seu modo de observar o mundo com um olhar e uma inteligência típicos dos atores e autores cômicos.

Bem, esse preâmbulo serve para três coisas. Primeiro para dizer que estou falando de alguém que conheço e de que gosto. Segundo, pra dizer que, sendo ator, Carlos Rosa conhece o outro lado do ofício e é sempre bom quando um intérprete busca saber mais sobre dramaturgia. Ganha a dramaturgia e ganha a cena. E, por último, porque sendo um ótimo ator de comédia, é curioso que ele tenha buscado em seu primeiro texto a “seriedade” do drama.

Confesso que logo que recebi o texto de Quem será contra nós... e atinei com o ditado popular que inspirou o título, já tive vontade de rir. Imaginei alguma situação hilariante entre os personagens e, pelos motivos que expus lá no primeiro parágrafo, tratei de imaginar o próprio autor fazendo um dos papéis. À medida que lia, vi que a situação não era propriamente engraçada, mas irônica, e pensei: ele deve estar preparando alguma, mais cedo ou mais tarde isso se complica e acaba virando comédia. Realmente, a situação complicou, mas acabou por revelar uma crítica demolidora, literalmente, que não lembra em nada a destruição/reconstrução cômica.

Carlos Rosa se debruçou sobre um tema atual, importante e urgente, sem meias palavras. Seus personagens argumentam, contra-argumentam e, à medida em que se intensifica a tempestade lá fora, percebemos que as quatro paredes entre as quais se encontram são sólidas apenas na aparência. Nesse embate as certezas se relativizam, as posições se invertem, máscaras são arrancadas e revelações acontecem - como pede o drama. E a crítica feita pelo autor a um certo estado das coisas acrescenta ao texto um incômodo que toda peça deveria ter, seja em que grau for.

É uma bela estreia. Mostra bem o trabalho de estruturação, de articulação das ideias e de investimento nos diálogos. Mas será que agora, dado seu primeiro passo na dramaturgia como autor sério, o meu amigo Carlos Rosa poderia presentear-nos com uma comédia?!



(O texto foi publicado no livro Dramaturgia em foco. Jacareí : Nova KMR, 2013)




domingo, 9 de novembro de 2014

Consultoria dramatúrgica - Parte II - Alguns atributos

Marcelo Castro, Alexandre de Sena e Gustavo Bones
"Congresso Internacional do Medo" - grupo espanca! - BH
Direção: Grace Passô - Consultoria dramatúrgica: Adélia Nicolete
(Foto: Guto Muniz)

Na postagem anterior, vimos o quanto pode ser complexo dissociar a dramaturgia do texto verbal dos demais textos a serem decodificados pelo espectador no teatro contemporâneo. É importante que se diga que na cena dita convencional outros textos existem, mas com função complementar, pois toma-se como ponto de partida uma peça já escrita e, em função dela, são desenvolvidos os demais elementos. Nesse caso, a presença de um fio condutor, de um eixo ou de um norteador tão forte, de um modo ou de outro condiciona as demais criações.

O teatro não mais dramático, ao abrir mão do eixo verbal, por exemplo, ou da fábula norteadora, condiciona outro processo: aquele em que as diversas camadas constituintes da cena são geradas em paralelo. O eixo, em muitos desses casos, é a equipe em si, seus desejos, suas pesquisas que permitem a experimentação ora de um espaço, ora de uma ambientação sonora, de uma enunciação verbal, de uma partitura corporal e de um sem número de experiências que partem umas das outras, bifurcam-se, sugerem novos caminhos, compõem aos poucos a estrutura, numa espécie de retroalimentação.

Nesse contexto, o trabalho de consultoria dramatúrgica pode ser considerado sob diferentes aspectos. O principal deles é o acompanhamento do trabalho  como um “olhar externo” ao processo, sem o mesmo envolvimento visceral da equipe. Um olhar crítico e comprometido não só com o resultante, mas fundamentalmente com os motivadores e objetivos do grupo, o que difere o consultor do espectador que porventura dê sua opinião nos ensaios abertos.

Se presente em etapas iniciais, o consultor de dramaturgia perguntará para quê e para quem o trabalho está sendo feito, bem como o que se pretende com ele.  Se a equipe não tiver isso claro, o consultor ajudará na busca dessa clareza, na busca de um norte a seguir. A partir dessa identificação e do esclarecimento de propósitos, poderá ser estabelecido um “plano de vôo”, uma “rota de navegação” para que se chegue o mais próximo possível do lugar/resultante almejado – ainda que se possa mudá-lo no decorrer da trajetória.

Em estágios mais adiantados, ciente do arcabouço do projeto e dos objetivos do grupo, o consultor poderá estabelecer um diálogo mais estreito com toda a equipe ou tão somente com o dramaturgo ou diretor, no intuito de auxiliar a condução da obra em construção até o mais próximo possível das metas. Discussões, estudos do texto dramático, análises de ensaios, interferências criativas são algumas das ações possíveis ao consultor. Ele atua, de certa forma, como um espectador privilegiado: aquele que detém informações preciosas, desconhecidas pelos demais. E, na medida em que seu olhar repousa sobre algo ainda em gestação, é necessário que se mantenha sempre alinhado ao porvir. Dito de outro modo, é preciso que cada proposta seja analisada não como algo concluído, mas como um vir a ser, em conjunto, inclusive, com o público pretendido. 

Em nenhum dos casos o consultor deve atuar como autoridade. Embora seja um profissional contratado para uma função específica e pontual, não é desejável que ele imponha a sua vontade, o seu ponto de vista ou as suas preferências estéticas sobre um processo que, inicialmente, não é seu. A neutralidade total é impossível, visto que, em geral, o consultor é convidado justamente pelo seu projeto estético, pela sua linha de atuação, a fim de estabelecer uma parceria mais produtiva. É importante, porém, que ela esteja o tempo todo no horizonte.

Há processos em que o consultor é chamado para um olhar mais específico sobre o texto verbal e sua conjunção com os demais. Mas quando texto dramático e cênico nascem simultaneamente, é bastante comum que as análises sejam feitas também em conjunto, isto é, que o papel impresso dê lugar à enunciação e à encenação, ainda que precárias. Seja como for, a maior eficácia do trabalho de um consultor dramatúrgico dependerá da frequência com que acompanha o processo, da permeabilidade do diálogo com os criadores, bem como da clareza de propósitos da equipe.



segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Consultoria dramatúrgica - Parte I - Contexto


Paulo Azevedo, Samira Ávila e Martielo Toledo
parte da equipe de criação de "Heróis - uma pausa para David"
Produção: SUA Companhia - BH-SP
Consultoria dramatúrgica: Adélia Nicolete



Até bem pouco tempo, a autoria individual de um texto dramático garantia, de certo modo, o “controle” de todo o processo de escrita – ao menos até o momento em que a peça era “montada”, com vistas à cena. Ao dramaturgo cabia criar um organismo em que as partes tivessem correspondência, em que as funções fossem plenamente justificáveis, que funcionasse, enfim, de maneira autônoma (como literatura dramática) e exequível por outrem. Daí o suposto “controle”, por parte do escritor, de todos os aspectos envolvidos, desde a idéia original até o ponto final. Controle de temas, premissas, personagens, ações e assim por diante, em busca da referida organicidade.

Atualmente, esse autor divide espaço com outros tipos de criadores e pode, ele mesmo, desenvolver textos autorais e em colaboração. No caso desse último tipo de processo, o termo “montagem de uma peça” passa a ser inadequado, pois a dramaturgia do texto verbal é criada pari passu às demais. O teatro contemporâneo – aquele que desvia com maior ou menor intensidade da forma dramática convencional – considera a dramaturgia de maneira mais ampla que a criação do texto a ser enunciado pelos atores. Assim, há textos da luz, do cenário ou da trilha sonora, por exemplo, a serem lidos e decodificados pelo público, a dialogar também com os demais textos envolvidos na criação do espetáculo.


Dito de outro modo, o “controle” do escritor que, no mais das vezes, colocava o texto no centro do processo teatral, tem de ser dividido com toda a equipe. Em decorrência disso, o organismo perfeito do drama cede lugar a uma criatura feita de elementos de origens e formas diversas que pode, sim, ser lida/interpretada como um todo, mas sem que se perca de vista sua composição a partir da junção de fragmentos. Em suma, a dramaturgia, antes relacionada ao texto verbal, no teatro contemporâneo passa a referir-se também à totalidade da cena, pois assumida como tessitura de ações as mais diversas, inclusive as que se referem ao espectador . É justamente nesse contexto que surge a figura do consultor de dramaturgia, da qual trataremos na próxima postagem.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

"Luís Alberto de Abreu: até a última sílaba" - Apresentação do livro




Conheci Luis Alberto de Abreu no final da década de 1980, num curso de dramaturgia que ele oferecia nas Oficinas Culturais Três Rios, em São Paulo. Uma série de fatores fez com que eu desistisse das aulas e tornasse a encontrá-lo somente em 1996, dessa vez em Santo André. Fui sua aluna por alguns anos e posso dizer que, mais do que elaborar textos de teatro, suas aulas nos tornam pessoas melhores. Estudos de psicologia, mitologia, trajetórias heróicas fazem-nos refletir sobre o mundo, sobre a nossa própria vida, nosso próprio caminho.

Nas conversas que tivemos para este livro me convenci ainda mais da sua extrema coerência. Abreu é do tipo que age conforme o que proclama. Pode parecer meio tolo dizer isso, mas, hoje em dia, quantas pessoas se comportam assim? A maioria de nós fala muitas coisas sábias e profundas, mas, na hora de agir, faz justamente o contrário do que apregoa. Ele traz o conhecimento mítico para a própria vida, para o relacionamento familiar, para a compreensão do outro e do mundo.

Pode-se dizer que é uma pessoa muito séria. À primeira vista parece bravo. Nesse depoimento vamos descobrir que talvez isso se deva à sua timidez – ou à descendência de garimpeiros e de um lobisomem! Com o correr do tempo, porém, ele vai se mostrando afável e engraçado, embora sempre mantenha a fera nas entrelinhas. A mesma fera que o impele a novos trabalhos, a não se deitar sobre possíveis louros, a não dar crédito exagerado aos elogios. Conforme diz, só ele sabe o quanto penou para escrever um texto e nenhum louvor garante que o próximo trabalho será fácil.

Nas entrevistas não falou, mas Abreu é corinthiano, joga capoeira e adora cuidar de flores - orquídeas, mais especificamente. E é um ótimo cozinheiro: comida italiana, árabe e japonesa estão entre as suas especialidades. Estrutura um prato como estrutura suas peças: separa todos os ingredientes primeiro, coloca em ordem de entrada na panela e só depois é que começa o preparo. Nessa hora ele também não abre mão da invenção, acrescentando outros sabores, não se contentando com a mera reprodução de uma receita...

Abreu coloca amor e capricho em tudo o que se mete a fazer. Diz que herdou isso do pai. Da mãe, brava como o quê, herdou o prazer de ouvir e contar histórias – reais ou fantásticas, pouco importa. Talvez venha daí a facilidade pra contar enredos de livros, peças e filmes com tanta riqueza de detalhes que parece estarmos lendo ou assistindo junto com ele.

Achei que seria fácil conseguir entrevistá-lo. Não foi. A agenda sempre lotada de cursos, palestras, reuniões, novos textos, direcionaram nossas conversas aos intervalos entre as diversas atividades ou ao fim de noite. Os filhos, curiosos, queriam saber porque o pai estava gravando tudo aquilo sobre o seminário dos padres, os ensaios com gente pelada, os momentos em que pensou em desistir da dramaturgia. Queriam saber sobre o momento em que entrariam no livro. Afinal, são quatro filhos – cada um esperando a sua vez de entrar em cena! E ao falar sobre isso Abreu se emociona, a mesma emoção com que fala do convívio com o pai, da morte da mãe; com que fala dos amigos e das inúmeras experiências agradáveis que o teatro lhe proporcionou ao longo da vida.

Muito me ajudaram outras fontes de informação tais como notícias de jornais e revistas, leitura de suas peças, e a tese de doutoramento elaborada por Rubens Brito a respeito de sua obra. Amigos e ex-alunos mandaram perguntas via internet – Elaine, Ana Régis e Alex, em especial. As reuniões constantes com os amigos ofereciam outras versões de alguns fatos, e os irmãos do entrevistado serviram de fiel da balança em relação aos acontecimentos anteriores a seu nascimento. Portanto, agradeço a todo mundo que entrou na dança junto conosco pra fazer esse livro acontecer.

Que ele seja prazeroso a todos como foi para mim escrevê-lo. Prazeroso como a leitura dos textos de Luís Alberto de Abreu (...)

Lançamento do livro na Mostra Internacional de Cinema - SP - 2004
(Foto: Nádia Margonari de Abreu)

É possível fazer download gratuito do livro ao acessar o link:
http://aplauso.imprensaoficial.com.br/edicoes/12.0.812.960/12.0.812.960.pdf





segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Tenement Museum – o teatro da imigração




A partir de meados do século 19, centenas de milhares de pessoas deixaram seus países rumo aos Estados Unidos, em busca de melhores condições de vida. A maioria delas, fugindo da fome, das guerras e da miséria, passava semanas no porão dos navios, alimentada pela esperança de conferir de perto as ruas pavimentadas de ouro de que tanto ouviam falar.

Desembarcados em Ellis Island, próxima a Manhattan, os estrangeiros passavam por uma inspeção burocrática e sanitária, capaz de mandar de volta os que estivessem com a saúde ou a documentação irregulares. Os aprovados tratavam de procurar trabalho e abrigo, às vezes, em um mesmo local: os cortiços (tenements) espalhados, principalmente, em Lower East Side.

Conjunto de cortiços em Lower East Side

Quem dispunha de algum dinheiro podia alugar um apartamento num dos diversos prédios de até cinco andares espalhados pela região. Sem elevadores, o preço diminuía na proporção dos andares. Nos primeiros tempos, as latrinas ficavam no quintal e não havia água encanada, apenas um poço que atendia a todo o prédio ou a vários deles. Sem iluminação elétrica, os corredores eram escuros e, com apenas uma janela, na sala, os moradores tinham de recorrer a lampiões ou velas. Os banhos semanais eram na bacia ou numa pia – mesmo local em que eram lavadas as poucas roupas, estendidas na área comum. No frio, muito frio. No calor, o abafamento obrigava os moradores a dormirem na cobertura do edifício, para alegria das crianças.

As famílias numerosas, de até 12 pessoas, ocupavam uma sala, uma cozinha e um quarto minúsculo, geralmente destinado ao casal e ao(s) bebê(s). Durante o dia a sala era usada como área social ou como oficina de trabalho e, à noite, como dormitório.  Tais oficinas, funcionando em condições insalubres e faturando muito pouco, abasteciam o mercado crescente de roupas e acessórios, localizado na área nobre da cidade.

Família na sala/dormitório do apartamento

Os órfãos, os desempregados ou os trabalhadores mais pobres dormiam nas ruas ou em alojamentos específicos para isso, a preço baixo. Ali, assim como nos cortiços, as condições sanitárias e a qualidade de vida eram péssimas. Tanto que, a certa altura, os governantes e a população abastada viram-se obrigados a assumir a existência do Lower East Side e a providenciar o saneamento gradativo do bairro, a fim de evitar que possíveis epidemias atingissem os palacetes da região norte.

O segundo filme da trilogia O poderoso chefão, de F. Ford Copolla, ilustra de modo exemplar tanto a chegada dos imigrantes ao porto, a inspeção e a eventual quarentena, quanto a vida nos cortiços e no bairro dos imigrantes. Alemães, chineses, judeus, portoriquenhos, africanos, poloneses, irlandeses, russos, italianos habitavam, no início do século 20, o quarteirão mais povoado de uma região cuja densidade demográfica era a maior do mundo. É nesse quarteirão e em um daqueles cortiços que está instalado, desde o final dos anos 1980, o Tenement Museum de Nova York.

O comércio de rua era intenso

Um dos principais objetivos de sua idealizadora, Ruth Abram, foi o estudo da identidade do homem americano, marcadamente influenciado pela multiplicidade de culturas que lhe deram origem. Face ao grande número de imigrantes legais e ilegais que continuam a chegar na cidade, a historiadora, preocupada com a intolerância e suas manifestações, considerou a fundação de um museu capaz de atender não só aos aspectos educativos, informativos e históricos, mas também à discussão de assuntos ligados à problemática da imigração. Assim, além de um perfil, digamos, turístico, a entidade oferece palestras, aulas de inglês para estrangeiros, auxilia na regularização de documentos e presta assistência em diferentes níveis. Seu slogan é “Revealing the past. Challenging the future” e resume a ideia de um contato com o passado que seja capaz de propor novas e melhores maneiras de se lidar com situações semelhantes, hoje e no futuro.

Um dos recursos utilizados pela equipe do museu para um contato sui generis com o  passado é o teatro. Dentre os diversos roteiros de visita oferecidos, um deles é uma entrevista com uma “moradora” do cortiço, Victoria Confino, menina de 12 anos, cuja família imigrou da Turquia para os Estados Unidos em 1913. Mas, para que esse contato seja o mais “real” possível, é preciso que todos os visitantes interpretem igualmente o papel de estrangeiros, recém-chegados ao país, na época das grandes imigrações.

Os interessados na visita ocupam uma das salas do museu. O guia começa por informar que a jovem, uma judia, não fala muito bem o inglês, mas é muito esperta e capaz de responder a qualquer pergunta a respeito de sua terra, da viagem de navio, da chegada, da vida cotidiana e muitos outros assuntos. Como está sozinha no apartamento, ele avisa que não será fácil receber estranhos. Por isso, propõe ao grupo representar uma família à procura de vaga no cortiço. Nesse momento, cada um deve escolher que papel irá assumir diante de Victoria – pai, mãe, filho, filha, sobrinho, neto, etc. –, a nacionalidade do grupo e, de acordo com o papel, que tipo de pergunta faria à anfitriã. Um ensaio é feito, descartando perguntas sobre televisão, computadores, por exemplo, que não existiam naquela época. O guia estimula diferentes possibilidades de abordagem, enquanto assume, ele mesmo, o papel de professor de inglês da menina.  

Cozinha/quarto de apartamento reconstituído
Tenement Museum

De posse de seus personagens, o grupo se encaminha para o número 97 da rua Orchard, antigo cortiço inteiramente reconstituído pelos historiadores. Nesse momento, ocorre uma viagem no tempo, um contato singular com o passado, como vislumbrou Ruth Abram. Ao entrarmos pelo portão dos fundos, notamos o quintal minúsculo e de terra batida e imaginamos seu uso. Subimos o primeiro lance de escadas e caminhamos em silêncio pelos corredores escuros e apertados do prédio, divididos entre o que somos (cidadãos visitantes do século 21) e o que iremos representar (estrangeiros, desterrados, de uma década longínqua). A espera no corredor escuro é fundamental para que possamos respirar a diferença entre o nosso modo de vida e as condições daqueles homens e mulheres.

O guia  bate à porta e se anuncia como professor. A menina resiste em abrir a porta, já que as aulas costumam ser na escola. O mestre insiste, dizendo que trouxe uma família com ele, crianças inclusive, insegura, precisando de orientação. Victoria cede e abre a porta, recebendo-nos com seu sotaque carregado e uma gentileza sem igual. A personagem – interpretada por uma  atriz de cerca de 30 anos, usando vestido, avental e um lenço cobrindo a cabeça – apresenta o apartamento, responde a todas as perguntas, mas também é curiosa, quer saber quem somos, de onde viemos, como foi a viagem, estimulando a que os visitantes se coloquem no lugar daquelas tantas pessoas assustadas, desorientadas e famintas, como a jovem e sua família, quando aportaram na América. O jogo é concluído com a preocupação de Victoria em relação à chegada dos pais: eles a proibiram de abrir a porta a estranhos. Ela nos leva até o corredor e deseja boa sorte em nossa nova vida.

É muito curioso que um jogo teatral seja proposto num museu da imigração. Viola Spolin, a criadora desse tipo de procedimento com atores e não-atores, iniciou sua vida profissional justamente com imigrantes, em Chicago. Ao trabalhar em um programa assistencial cuja proposta era o resgate e a conservação das manifestações culturais de cada povo, Spolin entrou em contato com jogos, brincadeiras, cantos e danças de diversos países, o que, sem dúvida, teve um papel significativo em seu futuro trabalho com os jogos teatrais.

Sala/quarto de apartamento reconstituído
Tenement Museum


* * *


O Museu dispõe de um ótimo site. Clicando em “Play” e, depois, em “Immigration game”, por exemplo, podemos simular a imigração realizada há mais de um século, com a ajuda de Victoria Confino. Divirtam-se.



Publicado originalmente em
http://papelferepedra.blogspot.com.br/

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

"Por Elise", do grupo espanca! - Apresentação do livro





Não se escapa, na abordagem das escritas contemporâneas,
devido à falta de certezas e modelos, à suspeita da ausência de savoir-faire.
Uma escrita muito aberta e sem trama narrativa bem amarrada
não esconderia a impotência do autor para construir uma história?
Não se pode levantar essa suspeita mais do que a que visa um pintor abstrato
quando perguntam se ele sabe desenhar “bem”.
O trabalho de leitura consiste, com a menor dose de a priori possível,
em entrar no jogo do texto e medir sua resistência.
Jean-Pierre Ryngaert



Quando fui convidada a apresentar o texto Por Elise aos leitores, Ryngaert surgiu de imediato diante de mim. Em seu livro Ler o teatro contemporâneo, o professor e diretor francês registra uma série de considerações que se adequam perfeitamente ao texto de Grace Passô e a muitos outros que vêm povoando a cena brasileira atual.

Ao comentar sobre a falta de certezas e modelos na escrita contemporânea, Ryngaert assinala a desconfiança com que se tem olhado o teatro dramático nos moldes aristotélicos – unidades, mimese, fábula, enredo, ação, conflito, diálogo, começo-meio-fim, encadeamento de ações, causa-conseqüência e tantas outras âncoras – e, ao mesmo tempo, a dificuldade de se libertar dele. O autor chega a cogitar a impossibilidade de uma ruptura radical com as antigas formas, pois a matriz do teatro será sempre uma troca entre seres humanos diante de outros seres humanos. Nesse ponto, junta-se ao francês um alemão, Hans-Thies Lehmann. Ao anunciar a existência de um teatro que chama de pós-dramático, Lehmann assegura que ele só é possível como superação do drama, ou seja, como uma manifestação que conserva algumas características de uma dramaturgia considerada “clássica”, incorporando a ela elementos próprios do contemporâneo – silêncio, fragmentação, lacunas, interrupções, intertextualidade e, sobretudo, uma maior colaboração do leitor/espectador na finalização da obra.

Por Elise é um claro exemplo disso. Ao mesmo tempo em que atende aos que ainda buscam avidamente por um fio, uma trama que seja, para com eles bordar um sentido, propõe um jogo de ir-e-vir, de esconde-esconde. Elipses, longas pausas, artes marciais, diálogos e trajetórias desencontrados e reencontrados, rubricas de filigrana que bem podem ser lidas em cena - uma estrutura de quebra-cabeça em que a autora propositalmente deixou de colocar algumas peças, pois elas estarão em poder da encenação e do público.

Uma outra característica marcante, capaz de situar o texto de Grace Passô e o espetáculo do Espanca! no panorama traçado por Lehmann e Ryngaert, relaciona-se ao processo de criação. Não mais um texto que nasce pronto, no gabinete do dramaturgo, e é oferecido a um grupo de atores que se incumbe de montá-lo e apresentá-lo, de preferência respeitando falas, rubricas e marcas de direção. Por Elise nasceu como um esboço apresentado ao grupo pela autora-diretora-atriz e que, dia a dia, era assimilado e transformado pela equipe. Cada um dos componentes atuou tanto na finalização do texto quanto na construção da cena. O fruto que pode ser degustado nesse volume é semente plantada por Grace, mas cultivada pela equipe.

E é preciso falar ainda do assunto, do conteúdo de Por Elise que, sem dúvida, determina a forma encontrada pela dramaturgia.

Grupos jovens, dispostos a escrever o próprio texto, ao se perguntarem sobre o que querem falar, em geral apresentam respostas bastante similares. Todos querem falar do amor, do medo, da violência. Querem falar de perdas, de morte, de solidão e de sonho. Falar do que se passa dentro deles e no entorno. Com o Espanca! não foi diferente. Mas, em vez de escolher um ou dois temas, o grupo se dispôs a desenvolver todos, ao mesmo tempo. O resultado é uma dramaturgia multifacetada, conforme foi descrito acima, e que tem como trunfo a poesia.

O grupo colocou todos os temas em seu cadinho alquímico e elaborou um espetáculo que supera o simples retrato, tão comum na cena atual. Mais do que um espelho que denuncia a todo instante nossas deformações, uma obra que reflete o que há por trás do espelho, por trás do retrato, dos muros, das cercas elétricas. E, se não bastasse, oferece ainda uma saída poética.

Nessa estrada, ao lirismo de Por Elise caminham também Encontros depois da chuva, da Cia Stravaganza, de Porto Alegre; Cantos periféricos, do Teatro da Conspiração, de Santo André, e Papo de anjo, do Galpão Cine Horto, de Belo Horizonte, para citar apenas alguns. É sintomático que muitos trabalhos desse tipo ocorram fora do eixo Rio-São Paulo e sejam realizados por companhias iniciantes e/ou vinculadas à pesquisa. A renovação do teatro, ou seu arejamento, cabe a elas mais do que aos grupos estabelecidos e aos nomes já consagrados.

No jogo do leitor/espectador com o texto, proposto por Ryngaert, Por Elise resiste. Resiste como texto poético, como retrato do homem e das relações humanas contemporâneas, lançando um olhar sui generis sobre a realidade. Amoroso, sem deixar de ser crítico. Agudo, sem deixar de ser lírico. Um olhar que espanca, mas espanca doce.


(Uma nova edição do livro foi publicada recentemente pela editora Cobogó.)





segunda-feira, 6 de outubro de 2014

"Sônia Guedes: chá das cinco" - Apresentação do livro

Curiosamente, a Apresentação de um trabalho é feita depois de todo ele escrito. Dessa forma, primeiro temos uma visão geral do conteúdo para, só depois, apresentá-lo com certa propriedade.

Concluídas as entrevistas, feitas as pesquisas e terminado o processo de escrita deste livro, componho uma imagem de seu conteúdo, ou seja, de Sônia Guedes, que é feita de pura poesia. Desde o primeiro encontro, no qual ela me ofereceu o famoso chá das cinco, servido em xícaras de porcelana e com direito a bolo, até nossa conversa mais recente, ela foi de uma delicadeza ímpar.

Isso não indica, absolutamente, fragilidade. Sônia reúne ao mesmo tempo doçura e força. Nos momentos em que as confissões eram doloridas ou que a fase em que se encontrava não era das mais confortáveis, ainda assim era possível identificar o vulcão, o relâmpago, a determinação incansável. Não fosse isso, ela não teria enfrentado um sem número de dificuldades físicas e materiais em sua vida. Vive-se com delicadeza e poesia, mas isso não basta.

Dona de uma cultura invejável, ela é capaz de transitar com propriedade por entre os mais diversos assuntos. Leitora voraz, acompanha e discute os últimos lançamentos literários. Pianista e cantora, tem na música erudita e na ópera suas principais referências. E como cidadã, reflete a todo momento sobre a situação política do país, numa insatisfação permanente, que é ao mesmo tempo freio e motor. Freio porque as injustiças sociais ferem profundamente a artista. Motor porque, instalada a revolta, Sonia não se contenta em reclamar, arregaça as mangas e toma a frente de ações concretas. Sempre foi assim.

Portanto, conhecer pessoalmente essa grande atriz foi um privilégio. Comecei a participar da vida teatral do ABC paulista nos anos oitenta e, desde o princípio, o nome de Sônia Guedes esteve presente como referência para todos nós. Ela e outros pioneiros foram os responsáveis por elevar os padrões artísticos da região. Se hoje podemos contar com escolas de formação musical, teatral e de artes visuais, muito se deve ao empenho daquelas pessoas que, desde os idos de 1950 buscaram estudo, aperfeiçoamento e desenvolvimento na “capital” e lutaram por trazê-los às cidades periféricas.

Para a compreensão desses fatos e a realização deste perfil contei com o auxílio de dois livros de José Armando Pereira da Silva, pesquisador da arte e da cultura do ABC: Memórias da cidade III e A cena brasileira em Santo André. Neles, o autor traça um panorama do teatro na cidade, o que permitiu também o estudo do contexto de alguns trabalhos de Sônia Guedes.


Ela nos convida agora a tomar um chá em sua companhia. Coloca generosamente diante de nós uma gama de sabores e perfumes, por vezes contrastantes, como o são delicadeza e força, paixão e sossego, brisa e furacão. Convida-nos a compartilhar com ela suas lembranças e inquietações mais profundas, traçando conosco, a quatro mãos, os versos mais puros da poesia da vida.


Manhã de autógrafos na Livraria Alpharrabio - Santo André
(Arquivo pessoal)


https://www.youtube.com/watch?v=_AM9TZ_nKqU


Para baixar gratuitamente o livro completo em pdf, acessar:
http://livraria.imprensaoficial.com.br/sonia-guedes-cha-das-cinco-colec-o-aplauso-perfil.html

terça-feira, 30 de setembro de 2014

"Reveillon" e "O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário" – uma família, um apartamento, quarenta anos de intervalo


Elenco do espetáculo "O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário"
Natália Guimarães, Edu Silva, Solange Moreno, Daniel Ortega, Cristiano Sales
Foto: Divulgação


Um dos temas mais abordados no teatro, os conflitos familiares, em suas mais diversas configurações, estiveram presentes desde os primórdios dessa arte, correspondendo a um contexto ou lançando sobre ele as luzes do entendimento. Longe de traçar um panorama, pretende-se nesse artigo esboçar um estudo comparativo de dois textos brasileiros que tratam da temática familiar, bem como assinalar, nas diferenças entre eles, algumas das transformações por que passou a dramaturgia no interregno de quarenta anos que os distancia no tempo.

O primeiro texto, Reveillon, foi escrito em 1974 por Flávio Márcio. Estreou naquele ano no Rio de Janeiro e, no ano seguinte, em São Paulo, obtendo grande sucesso de público e de crítica. O segundo, O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário, veio à cena em 2014 na capital paulista, com dramaturgia textual e direção de Evill Rebouças para pesquisa coletiva da Cia Artehúmus de Teatro. Nas duas peças, pai, mãe e um casal de filhos dividem com a morte um apartamento de classe média na metrópole.

Flávio Márcio nasceu nas Minas Gerais em 1945, transferindo-se, ainda jovem, para o eixo Rio-São Paulo, onde atuou como jornalista, publicitário e dramaturgo até o falecimento, em 1979, aos 34 anos. Sua dramaturgia, sempre de autoria individual e levada à cena nos moldes convencionais, deu-se entre os anos de 1960 e 1970, período em que o Brasil, ao mesmo tempo em que passava pelos rigores da ditadura militar, começava a desenvolver práticas horizontalizadas de criação. Contra a ditadura do diretor e do autor, a chamada criação coletiva propunha a desierarquização das funções e atendeu tanto ao engajamento político de esquerda quanto a iniciativas tidas, na época, como “alienadas”. Na obra autoral de Flávio Márcio, a repressão vivida pelo país naquele momento, parece ter encontrado reflexos e correspondência no âmbito familiar de composição tradicional, o que pode ser verificado em Réveillon, em À moda da casa e em Tiro ao alvo, textos pertencentes à trilogia Família à moda da casa.

Evill Rebouças, filho dos anos 1960 – assim como alguns dos atores da Cia Artehúmus –, cresceu e fez os primeiros anos de sua formação escolar no ABC paulista, sob a ditadura. Nas duas décadas seguintes, o fortalecimento do teatro amador, grande parte das vezes lançando mão de princípios da criação coletiva, em fábricas, nas igrejas e nas escolas,  garantiu o acesso de muitos jovens às diversas funções do fazer teatral. Daí ser bastante comum encontrarmos entre os artistas daquela geração e daquele local, quem se desdobre na dramaturgia, na direção, na interpretação ou em outras áreas, caso de Evill. A partir de meados dos anos 1980, fase da abertura política nacional, a região do ABC, em especial a cidade de Santo André, pode contar com a oferta de oficinas livres de artes, além de cursos formais nos recém criados Centros Comunitários, Escolas Municipais de Iniciação Artística e Escola Livre de Teatro. Tais iniciativas contribuíram, se não para o aumento do número de grupos amadores, ao menos para a capacitação de artistas que, a partir de então, buscaram a atuação profissional em teatro, ideia praticamente inconcebível em períodos anteriores.


O enredo

Reveillon transcorre no último dia de 1973. À medida que o relógio anuncia, com seu tique-taque, o final do ano aproximar-se, os quatro membros de uma família desfilam suas incapacidades e frustrações, suas derrotas e a mesmice de uma vida que se arrasta de modo solitário, ainda que em grupo.

Desde a primeira cena a morte ronda o apartamento, sob as mais diversas formas. Porém, é próximo ao final que o leitor/espectador percebe com clareza a intenção dos personagens: dar fim à própria existência, antes que o próximo ano chegue e a morte em vida recomece. O jovem Guima, poeta insipiente, abre a peça preparando o laço de uma forca enquanto sua mãe, Adélia, mostra-se incapaz de compreendê-lo. Logo de início é possível notar, na tentativa de diálogo entre eles, a falência da comunicação, cada vez mais comprometida ao longo da trama. O diálogo inaugural da peça dá o tom do que virá a seguir:

“GUIMA (lendo, reflexivamente, no caderno ao lado): “Não a face dos mortos...”
ADÉLIA (impaciente, mas tentando ser compreensiva): Dá dinheiro isso, meu filho?
GUIMA (continuando, indiferente): “... nem a face dos que não coram aos açoites da vida.”
ADÉLIA (continuando): Passar o dia inteiro com um pedaço de papel e um lápis na mão escrevendo coisinhas... Responde!
GUIMA (continuando com a leitura do poema): “Mas a face lívida dos que resistem pelo espanto.”
ADÉLIA (irritada): Dá dinheiro, por acaso? Dinheiro coisa nenhuma!
GUIMA (voltando à realidade): Quê que tem? Que que a senhora disse?”

O desejo poético não encontra lugar em uma casa já sem alma – em um país cujo desejo político foi solapado –, o que leva Guima a fugir, na tentativa de livrar-se da morte anunciada.

Murilo, o pai de família, tendo dificuldade de se fazer ouvido pelos demais, passa o dia tentando finalizar uma autobiografia pífia, elaborando a lista de agradecimentos que é praticamente uma despedida. Ele pouco fala e suas palavras têm importância nenhuma no curso das ações. Por vezes parece que o peso da realidade “lá fora” (fora das quatro paredes ou fora do “eu”) é permanentemente evitado pelo casal. A filha, Janete, a protagonista, encarrega-se de ser e de trazer para dentro da casa uma verdade incômoda: a de sustentar a casa como prostituta. Naquela noite fatídica, a moça chega do trabalho e junta-se à mãe no preparo da última ceia que, à semelhança da relação entre as duas, acaba desandando. Durante toda a ação da peça, Janete debate-se entre a banalidade e o cansaço do presente e o passado romântico, lembrando-se do amor impossível, num desespero que justifica seu gesto final.

Fora da órbita familiar gravita Fernando, antigo pretendente de Janete. Não se sabe ao certo se ele é real ou se existiu apenas na imaginação e no desejo da moça. Embora a troca dialógica entre os dois esteja menos comprometida, a comunicação não se dá plenamente, pois o amor é incapaz de superar as diferenças: Janete considera-se indigna do namorado. No ápice do desassossego, cada personagem encontra a maneira mais apropriada de se libertar do peso da existência. Guima morre de forma misteriosa, fora de cena – tantos pereceram dessa forma na época. Adélia enforca-se, interrompendo a profusão da fala, enquanto Murilo usa o revólver. Janete é a última. Atende um Fernando imaginário que vem propor casamento, mas já é tarde. Atira-se e às ilusões pela janela.

Em Reveillon, a incomunicabilidade é apenas uma das consequências da deterioração de relações familiares, em especial daquelas fundadas nos moldes tradicionais. Flávio Márcio traduz essa fratura por meio de interrupções de fala e pensamento, de elipses, de diálogos breves permeados por circunlóquios e pelo uso abundante de reticências. A criação individual do texto e a desvinculação entre autor e sala de ensaio, característicos de boa parte da dramaturgia do período, favoreceram o detalhamento das rubricas, que, não apenas sugerem a intenção dos personagens, mas estendem-se à determinação precisa de cenário e objetos, do figurino, da movimentação dos atores e de recursos audiovisuais.


A revisão do enredo

A trama de Reveillon é relativamente simples em relação a algumas propostas atuais. O teatro contemporâneo tem-se desprendido cada vez mais da ideia de enredo como o arranjo de ações em fluxo causal, algo que durante séculos norteou a composição dramatúrgica. À noção de uma história facilmente reproduzível contrapõe-se uma tessitura polifônica de palavras, ações, situações e temas, resultando em um tipo de escrita em que a identificação de uma fábula torna-se difícil ou mesmo impossível. É assim com O desvio do peixe no fluxo contínuo do aquário.

A recusa em apontar um caminho interpretativo começa pelo título. Trata-se de uma metáfora referente não só ao conteúdo, mas ao percurso do público pelas águas do espetáculo, em busca de um sentido para a cena ou, se preferir, para a vida na “modernidade líquida” em que nos encontramos.

A família, aqui, não é mais a de composição clássica. Pai e mãe dividem o apartamento com dois filhos legítimos, mas sabe-se que existe uma ex-mulher e uma outra filha, eventualmente citadas. Longe de ser mero detalhe, esse arranjo figura em parte o quadro familiar contemporâneo, e os conflitos nele gerados, ainda que semelhantes aos convencionais em alguns de seus efeitos, são de outra ordem, sobretudo econômica e emocional.

Se um apartamento, pago em infinitas prestações, era o sonho dourado da classe média retratada por Flávio Márcio, o condomínio figurado em O desvio do peixe... é, muitas vezes, o sonho possível no neo-liberalismo. Atende, qual fortificação medieval, ao anseio por segurança, intensificando-se o medo daquilo que corre além das muralhas e das cercas elétricas. É preciso sentir-se protegido e vigiado para sentir-se livre.

Nesse contexto, é Téo, o filho morto, quem recebe o espectador a fim de apresentar a família. Mas, se em Reveillon, foi a angústia pela não-comunicação e pela negação da vida o que conduziu os personagens ao suicídio (visto, inclusive, como metáfora da falência de certo modus vivendi), em O desvio do peixe... a morte ocorre de modo absolutamente involuntário. Tom, o peixe do aquário, é morto por uma bala perdida que atravessa a janela; o filho da diarista, detido num abrigo de menores, leva um tiro, e Téo, o anfitrião, não morre de nada, conforme ele mesmo esclarece:

“Eu morri de nada, simplesmente deitei, dormi e não acordei mais. Mas isso era tão pouco, tão simples que não fazia sentido... Sentido teria se eu tivesse morrido de bala perdida... levar um tiro no meio da testa, igual ao filho da diarista... Mas não, eu não morri de febre, de úlcera, de cistite, de convulsão... (...)”

A revelação de Téo esconde a ironia de um tempo em que a morte natural caiu em desuso. Paradoxalmente, o menino morto parece mais vivo que seus pais e sua irmã. Téo é o espírito que retorna e tenta compreender aqueles cuja alma está prestes a desvanecer. João Paulo, seu pai, “o provedor” – assim definindo na dramatis personae –, passa a vida tentando desincumbir-se de tarefas prosaicas – o trabalho que não lhe dá prazer, o pagamento de contas, uma pesquisa para seu curso supletivo e a reflexão sobre a peregrinação dos atuns – lamentando-se por não conseguir relacionar-se em profundidade com os filhos. Seu drama é comum à maioria dos provedores, a quem cabe trabalhar cada vez mais para manter um padrão de vida familiar, e de quem se cobra uma presença muitas vezes impossível.







Publicado originalmente em
Ateliê compartilhado, nº 2, março/2014




sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte - Parte II


O artista plástico Eymard Brandão em seu ateliê em Nova Lima
Foto: Thiago Fernandes

Ao receber o convite para conduzir a abertura do Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, considerei propor uma atividade semelhante às que desenvolvi em minha pesquisa para o doutoramento. Sua base é o diálogo estreito da escrita com as artes plásticas, o que atesta a originalidade da proposta tanto quanto justifica, entre nós, o uso do termo Ateliê em vez do tradicional Oficina – um espaço de criação artística, proporcionada pelo contato com a materialidade da tinta na tela, da pedra, da palavra.

Considerei também o quanto seria motivador o trabalho com a obra de algum artista que eu mesma desconhecesse e, por esse motivo, cheguei a Eymard Brandão, mineiro de Belo Horizonte, nascido em 1946 e morador dos arredores da cidade. Tanto quanto os aspectos estéticos da produção, o que me fez decidir pelo seu nome foi a pesquisa atual, feita a partir de resíduos minerais que o artista transforma em matéria prima. Eymard tem registrado as mudanças e também o impacto ambiental causados pelas grandes mineradoras na paisagem de seu Estado, algo que considerei bastante sugestivo no campo da dramaturgia.


Obra de Eymard Brandão analisada pelo grupo

Assim, em linhas bastante gerais, depois da apreciação coletiva de uma obra feita pelo grupo, e da apresentação do artista, de parte do acervo e de suas inquietações, a primeira camada sugerida para reflexão foi quais são os resíduos com que opera o dramaturgo hoje? Resíduos de linguagem, de relações, de crenças e narrativas, por exemplo? Resíduos da própria forma de se fazer teatro ou se escrever para?

A segunda camada implicaria em analisar os resíduos referentes à geografia do grupo: com que resíduos de mineiridade trabalha-se agora? A modificação da paisagem interna mineira e seus reflexos na dramaturgia. Dito de outro modo, o que as Minas Gerais de hoje conserva daquilo que a caracterizou ou ainda caracteriza aos olhos do estrangeiro: religiosidade, hospitalidade, oralidade, boa mesa, literatura. O que disso tudo ainda é e o que já virou resíduo a ser trazido à cena?

O fato de o grupo constituir-se de dramaturgos já experientes, deu-me a liberdade de tornar ainda mais complexa a proposição, ao partir para uma terceira camada, a de minhas inquietações recentes acerca de dramaturgia e memória. Desse modo, a questão colocada disse respeito à elaboração do pensamento de personagens atravessados pela velocidade, pela imediatez e pela superficialidade atuais, assim como pela substituição acelerada de experiências que não chegam a constituir-se em memória propriamente dita, mas em impressões até certo ponto voláteis. Como se pode dar uma transmissão de experiência ou a comunicação entre essas figuras? Na tentativa de apresentar algo concreto com que se trabalhar essa articulação, sugeri uma passagem da bíblia, a da multiplicação dos pães e dos peixes, tradicional e amplamente conhecida (de pronta recordação), fechada em uma unidade de ação e de sentido, simples, clara e direta. Como cada personagem/narrador poderia recuperar e transmitir essa tal situação – ouvida, sonhada ou vivida?

Finalmente, foi sugerida um camada que dissesse respeito ao narrador, já que a proposta seria a da elaboração de um episódio narrado. Tal narrador seria definido não a partir das motivações internas de cada participante, mas de um contato com a realidade externa, abrindo espaço para o acaso na criação. Os dramaturgos teriam um tempo para percorrer o entorno do Galpão Cine Horto e, a partir de observação atenta, identificar alguma pessoa capaz de inspirar um  personagem encarregado da manifestação.

Submersos em todas essas camadas, acrescidas dos elementos levantados na apreciação coletiva da obra, aos dramaturgos foi dado um tempo para que criassem uma narrativa breve, centrada no personagem escolhido e que contivesse, de algum modo, a memória da passagem bíblica.

Brotaram daí onze materiais textuais atravessados pelas artes de Eymard Brandão; por reflexões acerca de memória, geografia e pertencimento; pelos materiais residuais de forma e conteúdo, assim como pelas inquietações da cena contemporânea e daqueles que fazem o teatro (de) hoje.


Assis Benevenuto, Marcos Coletta (Galpão Cine Horto), eu, Vinícius Souza e Leonardo Lessa (Galpão Cine Horto)
Inhotim - agosto de 2014

Agradeço ao Vinícius Souza e ao Assis Benevenuto pelo convite, pela imersão e pela diversão; à equipe do Galpão Cine Horto pela recepção invariavelmente calorosa e, sobretudo, aos dramaturgos do projeto, pelo generoso "sim".

Boas escritas!



para saber mais sobre Eymard Brandão e seu trabalho, acessar:
http://www.eymardbrandao.com.br

sábado, 20 de setembro de 2014

Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto, em Belo Horizonte - Parte I


Fachada Galpão Cine Horto
Ilustração: Thiago Mazza


O estímulo à criação dramatúrgica em Belo Horizonte foi assumido pelo Galpão Cine Horto praticamente desde sua criação, há quinze anos. A formação de um Núcleo de Dramaturgia deu-se em paralelo com a criação do espetáculo Caixa Postal 1500, no projeto Oficinão. Sob a coordenação de Luís Alberto de Abreu, o Núcleo reuniu mais de uma dezena de dramaturgos interessados no desenvolvimento de uma escrita textual em contato estreito com a cena. Dali em diante, a experiência foi repetida diversas vezes, seja com vistas à criação de espetáculos do Oficinão, seja de outras formas.

Atualmente, o panorama da dramaturgia na cidade tem se ampliado e muito se deve às iniciativas pioneiras do Galpão. O teatro belorizontino tem conquistado representatividade cada vez maior e grande parte das produções contam com textos dramáticos desenvolvidos dentro do próprio grupo, ou seja, os dramaturgos, em geral, estão vinculados a coletivos, o que viabiliza ainda mais o aperfeiçoamento da escrita, seja ela textual ou cênica. Em decorrência disso, novos projetos encarregam-se de fomentar a criação e a divulgação de textos para teatro, ganhando espaço e público crescentes na cidade.

Portanto, é significativo que, em 2014, o Cine Horto abra as portas para sediar uma iniciativa criada fora dele, o Ateliê de Dramaturgia, conduzido por Vinícius Souza e Assis Benevenuto. Significativo porque muitos dos que fazem teatro e dramaturgia hoje em Belo Horizonte nasceram ou desenvolveram-se artisticamente sob a égide do Galpão, e são eles que agora retornam, propondo novos olhares e novas escutas.

Assis e Vinicius atuam como dramaturgos, entre outras funções relacionadas ao teatro. Os Ateliês de Dramaturgia que têm promovido tomam como principal referência o modelo francês e nosso diálogo começou justamente por esse motivo: uma troca de experiências e de bibliografia acerca do tema. Para minha pesquisa de doutorado arrisquei uma apropriação antropofágica do material francês, ao propor uma escrita que nascesse da interação com as artes visuais. Os mineiros trilharam outros e variados caminhos e, em agosto de 2014, nossas pesquisas puderam encontrar-se ao vivo, quando fui convidada para as atividades de abertura do Ateliê de Dramaturgia do Galpão Cine Horto.

Esse encontro será abordado na próxima postagem do blog. Apareçam!



Seguem os links do projeto Janelas de Dramaturgia. Criado e coordenado por 
Sara Pinheiro e Vinícius Souza,  objetiva a  discussão, o estímulo e a discussão 
de dramaturgia contemporânea em BH:
http://janeladedramaturgia.wordpress.com
https://www.facebook.com/janela.dedramaturgia