segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Tenement Museum – o teatro da imigração




A partir de meados do século 19, centenas de milhares de pessoas deixaram seus países rumo aos Estados Unidos, em busca de melhores condições de vida. A maioria delas, fugindo da fome, das guerras e da miséria, passava semanas no porão dos navios, alimentada pela esperança de conferir de perto as ruas pavimentadas de ouro de que tanto ouviam falar.

Desembarcados em Ellis Island, próxima a Manhattan, os estrangeiros passavam por uma inspeção burocrática e sanitária, capaz de mandar de volta os que estivessem com a saúde ou a documentação irregulares. Os aprovados tratavam de procurar trabalho e abrigo, às vezes, em um mesmo local: os cortiços (tenements) espalhados, principalmente, em Lower East Side.

Conjunto de cortiços em Lower East Side

Quem dispunha de algum dinheiro podia alugar um apartamento num dos diversos prédios de até cinco andares espalhados pela região. Sem elevadores, o preço diminuía na proporção dos andares. Nos primeiros tempos, as latrinas ficavam no quintal e não havia água encanada, apenas um poço que atendia a todo o prédio ou a vários deles. Sem iluminação elétrica, os corredores eram escuros e, com apenas uma janela, na sala, os moradores tinham de recorrer a lampiões ou velas. Os banhos semanais eram na bacia ou numa pia – mesmo local em que eram lavadas as poucas roupas, estendidas na área comum. No frio, muito frio. No calor, o abafamento obrigava os moradores a dormirem na cobertura do edifício, para alegria das crianças.

As famílias numerosas, de até 12 pessoas, ocupavam uma sala, uma cozinha e um quarto minúsculo, geralmente destinado ao casal e ao(s) bebê(s). Durante o dia a sala era usada como área social ou como oficina de trabalho e, à noite, como dormitório.  Tais oficinas, funcionando em condições insalubres e faturando muito pouco, abasteciam o mercado crescente de roupas e acessórios, localizado na área nobre da cidade.

Família na sala/dormitório do apartamento

Os órfãos, os desempregados ou os trabalhadores mais pobres dormiam nas ruas ou em alojamentos específicos para isso, a preço baixo. Ali, assim como nos cortiços, as condições sanitárias e a qualidade de vida eram péssimas. Tanto que, a certa altura, os governantes e a população abastada viram-se obrigados a assumir a existência do Lower East Side e a providenciar o saneamento gradativo do bairro, a fim de evitar que possíveis epidemias atingissem os palacetes da região norte.

O segundo filme da trilogia O poderoso chefão, de F. Ford Copolla, ilustra de modo exemplar tanto a chegada dos imigrantes ao porto, a inspeção e a eventual quarentena, quanto a vida nos cortiços e no bairro dos imigrantes. Alemães, chineses, judeus, portoriquenhos, africanos, poloneses, irlandeses, russos, italianos habitavam, no início do século 20, o quarteirão mais povoado de uma região cuja densidade demográfica era a maior do mundo. É nesse quarteirão e em um daqueles cortiços que está instalado, desde o final dos anos 1980, o Tenement Museum de Nova York.

O comércio de rua era intenso

Um dos principais objetivos de sua idealizadora, Ruth Abram, foi o estudo da identidade do homem americano, marcadamente influenciado pela multiplicidade de culturas que lhe deram origem. Face ao grande número de imigrantes legais e ilegais que continuam a chegar na cidade, a historiadora, preocupada com a intolerância e suas manifestações, considerou a fundação de um museu capaz de atender não só aos aspectos educativos, informativos e históricos, mas também à discussão de assuntos ligados à problemática da imigração. Assim, além de um perfil, digamos, turístico, a entidade oferece palestras, aulas de inglês para estrangeiros, auxilia na regularização de documentos e presta assistência em diferentes níveis. Seu slogan é “Revealing the past. Challenging the future” e resume a ideia de um contato com o passado que seja capaz de propor novas e melhores maneiras de se lidar com situações semelhantes, hoje e no futuro.

Um dos recursos utilizados pela equipe do museu para um contato sui generis com o  passado é o teatro. Dentre os diversos roteiros de visita oferecidos, um deles é uma entrevista com uma “moradora” do cortiço, Victoria Confino, menina de 12 anos, cuja família imigrou da Turquia para os Estados Unidos em 1913. Mas, para que esse contato seja o mais “real” possível, é preciso que todos os visitantes interpretem igualmente o papel de estrangeiros, recém-chegados ao país, na época das grandes imigrações.

Os interessados na visita ocupam uma das salas do museu. O guia começa por informar que a jovem, uma judia, não fala muito bem o inglês, mas é muito esperta e capaz de responder a qualquer pergunta a respeito de sua terra, da viagem de navio, da chegada, da vida cotidiana e muitos outros assuntos. Como está sozinha no apartamento, ele avisa que não será fácil receber estranhos. Por isso, propõe ao grupo representar uma família à procura de vaga no cortiço. Nesse momento, cada um deve escolher que papel irá assumir diante de Victoria – pai, mãe, filho, filha, sobrinho, neto, etc. –, a nacionalidade do grupo e, de acordo com o papel, que tipo de pergunta faria à anfitriã. Um ensaio é feito, descartando perguntas sobre televisão, computadores, por exemplo, que não existiam naquela época. O guia estimula diferentes possibilidades de abordagem, enquanto assume, ele mesmo, o papel de professor de inglês da menina.  

Cozinha/quarto de apartamento reconstituído
Tenement Museum

De posse de seus personagens, o grupo se encaminha para o número 97 da rua Orchard, antigo cortiço inteiramente reconstituído pelos historiadores. Nesse momento, ocorre uma viagem no tempo, um contato singular com o passado, como vislumbrou Ruth Abram. Ao entrarmos pelo portão dos fundos, notamos o quintal minúsculo e de terra batida e imaginamos seu uso. Subimos o primeiro lance de escadas e caminhamos em silêncio pelos corredores escuros e apertados do prédio, divididos entre o que somos (cidadãos visitantes do século 21) e o que iremos representar (estrangeiros, desterrados, de uma década longínqua). A espera no corredor escuro é fundamental para que possamos respirar a diferença entre o nosso modo de vida e as condições daqueles homens e mulheres.

O guia  bate à porta e se anuncia como professor. A menina resiste em abrir a porta, já que as aulas costumam ser na escola. O mestre insiste, dizendo que trouxe uma família com ele, crianças inclusive, insegura, precisando de orientação. Victoria cede e abre a porta, recebendo-nos com seu sotaque carregado e uma gentileza sem igual. A personagem – interpretada por uma  atriz de cerca de 30 anos, usando vestido, avental e um lenço cobrindo a cabeça – apresenta o apartamento, responde a todas as perguntas, mas também é curiosa, quer saber quem somos, de onde viemos, como foi a viagem, estimulando a que os visitantes se coloquem no lugar daquelas tantas pessoas assustadas, desorientadas e famintas, como a jovem e sua família, quando aportaram na América. O jogo é concluído com a preocupação de Victoria em relação à chegada dos pais: eles a proibiram de abrir a porta a estranhos. Ela nos leva até o corredor e deseja boa sorte em nossa nova vida.

É muito curioso que um jogo teatral seja proposto num museu da imigração. Viola Spolin, a criadora desse tipo de procedimento com atores e não-atores, iniciou sua vida profissional justamente com imigrantes, em Chicago. Ao trabalhar em um programa assistencial cuja proposta era o resgate e a conservação das manifestações culturais de cada povo, Spolin entrou em contato com jogos, brincadeiras, cantos e danças de diversos países, o que, sem dúvida, teve um papel significativo em seu futuro trabalho com os jogos teatrais.

Sala/quarto de apartamento reconstituído
Tenement Museum


* * *


O Museu dispõe de um ótimo site. Clicando em “Play” e, depois, em “Immigration game”, por exemplo, podemos simular a imigração realizada há mais de um século, com a ajuda de Victoria Confino. Divirtam-se.



Publicado originalmente em
http://papelferepedra.blogspot.com.br/

2 comentários:

  1. Ah que delícia de passeio pelo seu texto! Quanto aprendizado nessa vivência! Durante os anos de trabalho com as oficinas de teatro, me aproximei muito do trabalho da Viola e hoje percebo com gratidão o quanto de camadas de vida ali estavam para nos nutrir até os dias atuais! Gostei muito de saber disso tudo tão detalhadamente. Um abraço querida!

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    1. Um abraço, Elaine. Obrigada pela visita. Não é à toa que o trabalho com jogos teatrais permanece vivo e potente, em especial nas fases de iniciação. Há uma fonte inesgotável ali.
      No caso do Tenement isso fica claríssimo!

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