A
palavra texto, que estamos
habituados a associar à palavra, é da mesma família da textura, da tessitura,
do tecido, enfim. Não é à toa que para o povo dogon da África ocidental, a tecelagem, atividade de importância primordial para a comunidade, é
assimilada à palavra. Segundo a tradição, a primeira palavra foi a primeira
faixa de algodão tecido, que jamais deverá ser cortada.
Para aquele povo, do mesmo modo que a tecelagem é a união de fibras, o ato
de falar firma a vida social. Cada instrumento ou etapa da ação de tecer, por
exemplo, corresponde a um órgão ligado à palavra. Assim, a polia está associada
às cordas vocais – por causa do som, do rangido –, o tecer está associado à
boca, a lançadeira à língua, e o pente aos dentes. O tecido é entendido como um
conjunto de palavras em que os fios se entrelaçam como os elementos da
linguagem, animados pelo ranger da polia, o barulho dos tensores e da
lançadeira. O trabalho de tecer evoca um discurso, uma fala cujo sentido é
revelado pelos motivos que aparecem no tecido.
Tecelões dogon - 1986-1987 - foto: Hélène Leloup Museu do Quai Branly - Paris, 2011 |
É assim também com o texto teatral, entendido aqui como a
escritura/tessitura geral do espetáculo e não somente como aquilo que é emitido
vocalmente pelos atores. A encenação é a trama de fios diversos, cada um com a
cor e a textura que lhes são próprias. Em grande parte dos casos há, sim, o fio
da palavra falada. No entanto, a leitura total da obra se dá graças ao
entrelaçamento dos fios da luz, das sonoridades e da gestualidade, os fios da
configuração cênica, dos cenários e objetos, do visagismo e tantos outros. Não
é à toa que em teatro usam-se termos tais como “costurar ou alinhavar as
cenas”, “arrematar”, “não deixar fios soltos”, por exemplo.
O momento culminante de qualquer trabalho dessa natureza dá-se no contato com
o público. Tal qual um tecelão, cabe ao espectador, no contato com a obra,
completar a seu modo o enredo com os fios de sua experiência, de sua formação,
de sua memória. Há, inclusive, espetáculos ou perfomances até certo ponto “incompletas”,
pois permeáveis à intervenção direta do público no momento da apresentação. Ou
seja, o trabalho é tecido a cada sessão de um modo diferente.
(Publicado originalmente com o título "Os fios do texto" em
http://alinhavandopontos.blogspot.com.br)
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