quinta-feira, 19 de junho de 2014

Dramaturgia em colaboração: por um aprimoramento


Há alguns anos vemos aumentar significativamente o número de espetáculos realizados em processo colaborativo. Dentre as críticas que recebem é comum apontarem falhas na configuração dramatúrgica, como se o fato de muitas e diferentes vozes atuarem na composição da obra tornasse a dramaturgia quase sempre “poluída”, desarticulada, mal urdida. A que se deve isso? Após um breve panorama, apontaremos aqui algumas possíveis causas desses problemas e, quem sabe, uma ou outra possível solução.

Desde os anos 1990 o número de coletivos de criação tem crescido tanto no Brasil quanto no exterior. Espetáculos teatrais, músicas, artes plásticas, áudio-visuais tem sido criados e exibidos a partir da ação conjunta dos integrantes e, grande parte das vezes, no chamado processo colaborativo. O método é semelhante, embora os objetivos possam ser diversos. O Ateliê Fidalga, por exemplo, idealizado pelos artistas plásticos Sandra Cinto e Albano Afonso, em São Paulo, reúne artistas que trabalham com diferentes técnicas e um procedimento básico: levam suas ideias ou esboços às reuniões semanais para serem analisados pelo coletivo, e receber críticas e sugestões antes de serem executados ou finalizados. É o coletivo que responde também pela organização das exposições e divulgação dos trabalhos. Esse tipo de conduta tem ganhado cada vez mais seguidores a partir dos anos 1990 e garante uma série de vantagens que os métodos tradicionais de produção já não garantem mais: autonomia de criação, equivalência de funções, mútua interferência nas instâncias criativas, maior independência em relação a produtor/curador/gravadora e ao mercado, gestão própria de recursos, entre tantos outros.

            No teatro o processo colaborativo ganhou contornos mais definidos e uma pesquisa formal e acadêmica a partir dos trabalhos do Teatro da Vertigem, de São Paulo, nos anos 1990. Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem como antecedentes imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do dramaturgismo (NICOLETE, 2005). Desta, herdou a pesquisa e a presença de alguém responsável pela dramaturgia na sala de ensaio. O dramaturgista atua muitas vezes como “braço-escritor” do diretor, aliando a criação dos intérpretes, os elementos pesquisados, a visão do diretor e a sua própria na escrita do texto a ser enunciado em cena. Da criação coletiva o processo colaborativo parece ter herdado, em muitos casos, a concretização de um desejo grupal, que leva à pesquisa conjunta e à execução de múltiplas funções com interferências mútuas, de modo às linhas autorais esmaecerem em nome da assinatura coletiva.


            À parte as vantagens todas do coletivo criador, talvez decorra dessa segunda ascendência – a da criação coletiva - o fato de muitos dos espetáculos frutos de processo colaborativo receberem críticas desabonadoras em relação à dramaturgia. Melhor dizendo: ao assumir a influência direta da criação coletiva talvez devêssemos aprimorar seus “métodos” - e aqui vão comentários estritamente referentes à elaboração do texto a ser enunciado.
           

Cartaz do espetáculo "Geração 80", criado em processo colaborativo
Dramaturgia: Adélia Nicolete
2000

    Ao levarmos em conta o contexto em que a criação coletiva se deu mais intensamente  no Brasil – final dos anos 1960 até princípio dos 1980 – poderemos notar que o procedimento (processo) trazia um peso de transgressão, inovação e vitalidade tão grande e necessário que, compreensivelmente, se sobrepunha, muitas vezes, à questão estética. Dado o contexto, o teatro da militância, o teatro feito com operários e os grupos amadores em geral estavam menos preocupados com a forma final de seu trabalho que com o processo de pesquisa, atuação comunitária, democratização do fazer artístico, expressão de pensamento e tantas outras necessidades e motivações. Consequentemente, público e crítica do período, movidos  pelos mesmos impulsos, praticamente desconsideravam os possíveis e frequentes “defeitos”, porque a comunicação se estabelecia menos por canais estéticos que ideológicos ou empáticos. Dessa forma, um aspecto meio “sujinho” ou “descosido”, que poderia ser visto como um problema dramatúrgico, ganha status de “charme”, de “it”, de resíduo do processo – este o protagonista.

            Mudado o contexto, acessadas novas formas e procedimentos artísticos, faz-se necessário investigar o por que da permanência de certas falhas.

            Em primeiro lugar é preciso levar em consideração que, assim como havia diferenças de abordagem da criação coletiva pelos grupos, o processo colaborativo pode variar também de acordo com uma série de fatores. Podemos elencar o nível de experiência dos participantes, o tempo disponível, as condições econômicas e físicas de trabalho, entre outros (NICOLETE, 2005). Sendo assim, a presença de um dramaturgo experiente, por exemplo, pode fazer toda a diferença na condução e no acabamento dramatúrgico de um espetáculo. Assim como um prazo mais flexível para pesquisa intelectual e cênica. Ou seja, torna-se difícil fazer um diagnóstico geral a respeito do assunto.

            Outro aspecto a se considerar é a formação do dramaturgo. Se entre os anos 1960-1980 a formação dramatúrgica era, em grande parte, empírica ou auto-didata devido à ausência de cursos formais, temos visto, desde o final da década de 80, um aumento significativo de cursos, oficinas e, por isso, de dramaturgos “formados”. São eles responsáveis pela renovação da dramaturgia brasileira nos últimos tempos – quando ainda se afirmava que não havia mais autores nacionais.  Porém, convém uma pergunta: que tipo de formação é necessária para um dramaturgo que se disponha a atuar em processo colaborativo? Seria a mesma do autor de gabinete? Há um perfil adequado para cada tipo de processo? Pode haver migração de um dramaturgo de gabinete para o processo colaborativo? Este procedimento se adéqua a um texto de contornos dramáticos ou é preciso que se busquem novos enfoques?

            A experiência diz que um dramaturgo de gabinete pode atuar satisfatoriamente em processo colaborativo. O trabalho de Luís Alberto de Abreu junto ao Teatro da Vertigem e ao Grupo Galpão confirma a hipótese. É certo que desde seus tempos amadores Abreu dialoga com a cena. Mas é também certo que alguma “marca” de sua dramaturgia está impressa tanto em um quanto em outro espetáculo daqueles coletivos (NICOLETE, 2005). Ocorre que a presença de um dramaturgo “profissional” na equipe pode causar a impressão de maior segurança e estabilidade – sensações caras quando se trata de um processo tão instável e imprevisível quanto o colaborativo. Esse suposto “profissionalismo” pode, por sua vez, dar ao dramaturgo maior “autoridade” junto ao grupo na hora de argumentar sobre determinadas soluções, e a configuração pode vir a ser mais uniforme do ponto de vista dramatúrgico.

Material de divulgação do espetáculo "Poto segredo. Primeiros fios" - Grupo Pontos de Fiandeiras
Dramaturgia em processo colaborativo: Adélia Nicolete
2013

E o dramaturgo iniciante? Que dificuldades enfrenta nesse tipo de processo? Em primeiro lugar sua formação é, na maioria das vezes, dramática. Os cânones consagrados como principal referência tendem a conduzir a soluções vinculadas à presença de um enredo reproduzível, personagens e conflitos definidos, clímax, desenlace – soluções limitadas quando se trata de uma dinâmica criativa capaz de levar a outro tipo de resolução. É como se tentássemos adequar um material com determinada maleabilidade a um molde que não lhe dá a melhor conformação ou não lhe explora suas características mais pulsantes.

            Este dramaturgo iniciante encontra também dificuldade no que se refere ao próprio trabalho em grupo. Condicionado, em geral, ao trabalho solitário, em que é o senhor da obra em sua totalidade – da ideia à formatação final – ao se ver inserido em um ambiente de “promiscuidade criativa” (ARAÚJO, 2003) tende a acionar mecanismos de defesa que, pelo menos a princípio, podem colocá-lo à parte do processo. Por isso cremos que uma formação adequada ao dramaturgo de hoje deveria levar em conta o desvelamento do processo criativo e a reflexão grupal sobre ele, prática comum nos ateliês de escrita em língua francesa. Ao ter sua ideia e seu texto analisados e discutidos em grupo por outros autores ou mesmo iniciantes, além de aprimorar o trabalho, proporciona ao dramaturgo uma experiência de troca, de mútua interferência, de sair do próprio universo e mergulhar no universo criativo alheio, entre outras (NICOLETE, 2010). Isso pode prepará-lo mais adequadamente para um processo como o colaborativo, que exige desprendimento, análise, visão de conjunto, crítica em perspectiva, seleção de material e de sugestões, por exemplo. Que exige um fazer e refazer constante, um abrir mão de grandes achados poéticos em nome da concretude da cena (ABREU, 2003).

            Esse aprendizado nos parece necessário porque uma das críticas mais recorrentes ao resultado dramatúrgico do processo colaborativo é o excesso - como se todos os criadores tivessem de ser contemplados no texto final. Como se ao dramaturgo coubesse tão somente “costurar” as criações alheias – por vezes discrepantes – tendo o cuidado ético (e talvez ideológico) de processar equitativamente as contribuições de cada criador, mesmo que não tenham tanta consistência ou significado no conjunto. Por isso, um aprendizado coletivo já em sua formação, poderia dar ao dramaturgo a experiência da escuta, do aproveitamento criterioso de material sugerido por outrem e, principalmente, a noção de sua autonomia em relação às contribuições do grupo.

            Aliado a isso, um outro fator sinaliza a diferença entre processos: a convivência do grupo. Um coletivo que atua há um certo tempo junto difere, no processo, de outro que engatinha na criação compartilhada? Parece-nos que sim. A afinação entre os parceiros que o convívio tende a proporcionar leva, à parte os conflitos também gerados pela intimidade, a certa sintonia criativa, como se uns “lessem o pensamento” dos outros, de modo que as respostas aos estímulos podem vir mais rápidas, os acordos ou os enfrentamentos podem se dar mais objetivamente. Um dramaturgo residente, como ocorre em algumas companhias, talvez alcance um aperfeiçoamento cada vez maior a cada trabalho.
           
            Por outro lado, a questão das críticas à dramaturgia colaborativa nos leva, necessariamente, a uma visão mais abrangente da situação. É preciso lembrar que a deposição do texto como elemento central de uma montagem e sua disposição no mesmo patamar das outras instâncias emissoras de sentido, traz à reflexão a noção de uma dramaturgia da luz, da interpretação, da cenografia, da direção e assim por diante. E se há um texto a ser lido pelo espectador em cada uma dessas áreas não seria recomendável, então, um aprendizado, ainda que mínimo, de dramaturgia para todos esses criadores/autores? Não seria mais produtivo, não traria melhor resultado dramatúrgico final se atores, diretor, cenógrafo, figurinista tivessem noções de dramaturgia? Não a dramaturgia acadêmica, reverente à tradição, mas a experiência dramatúrgica da imaginação, da concepção, da organização, da composição, da harmonização de elementos com vistas a uma escrita que, paradoxalmente, pode nem vir a ser escrita/enunciada! A experiência com diversos tipos de materiais textuais desvinculados de padrões dramáticos, como narrativas, depoimentos, documentos, tiradas, formas breves em geral (NICOLETE, 2010).

            Esta reflexão traz, necessariamente, a reboque uma outra. O ator vem sendo formado para um processo que exige dele bem mais que a interpretação de um papel previamente construído? E o diretor? Sua atuação leva em conta os demais criadores ou insiste em um papel de compositor e regente de uma partitura por ele previamente definida? O cenógrafo, o iluminador, o figurinista, por sua vez, vem sendo preparados para opinar criativamente sobre algo ainda em construção ou permanecem aguardando uma melhor definição da cena para atuar criativamente? E os demais artífices? São questões importantes e que merecem uma reflexão mais alentada porque, em geral, se critica a dramaturgia, mas se esquece de que ela é também a configuração verbal de criações várias. E se essas criações não trouxerem em seu bojo um material limpo e bem cosido, mais dificilmente resultarão em excelência estética.

            É notável a incorporação de alguns paradigmas cênicos nos textos teatrais elaborados no coletivo, o que pode ser verificado, por exemplo, em O Livro de Jó, de Luís Alberto de Abreu, realizado com o Teatro da Vertigem (FERNANDES, 2010). Sendo assim, ao dramaturgo não seria benéfico se, desde sua formação, tivesse contato por mínimo que fosse com as demais áreas?

            Enfim, como foi dito no início, tentamos apontar alguns motivos que justifiquem as falhas encontradas na dramaturgia em processo colaborativo. Causas de origem estrutural, grupal ou da própria formação dos artistas. E uma das soluções nos parece que pode ser encontrada, principalmente, em uma pedagogia que vise à preparação e ao aperfeiçoamento do trabalho criativo coletivo em todas as áreas de produção de um espetáculo.



Bibliografia
ABREU, Luís Alberto de. Processo colaborativo : relato e reflexões sobre uma experiência de criação. Cadernos da ELT, Santo André, v.1, n.0, p. 33-41, mar. 2003.

SILVA, Antonio Carlos de Araújo.  A gênese da vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. 2003. 192p. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

FERNANDES, Sílvia.  Teatralidades contemporâneas.  São Paulo : Perspectiva, 2010.

NICOLETE, Adélia. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

______. Criação coletiva e processo colaborativo : algumas semelhanças e diferenças no  trabalho dramatúrgico.   Sala preta. São Paulo : v. 2, n. 1, p. 318-325, 2002.

______. Fazer para aprender : a prática dos ateliês de escrita dramática em língua francesa.  ANAIS do VI Congresso da ABRACE, 2010.


 Adélia Nicolete
 Artigo publicado originalmente a Revista Subtexto


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