Há alguns anos vemos aumentar significativamente o número de espetáculos
realizados em processo colaborativo. Dentre as críticas que recebem é comum
apontarem falhas na configuração dramatúrgica, como se o fato de muitas e
diferentes vozes atuarem na composição da obra tornasse a dramaturgia quase
sempre “poluída”, desarticulada, mal urdida. A que se deve isso? Após um breve
panorama, apontaremos aqui algumas possíveis causas desses problemas e, quem
sabe, uma ou outra possível solução.
Desde os anos 1990 o número de coletivos de criação tem crescido
tanto no Brasil quanto no exterior. Espetáculos teatrais, músicas, artes
plásticas, áudio-visuais tem sido criados e exibidos a partir da ação conjunta
dos integrantes e, grande parte das vezes, no chamado processo colaborativo. O
método é semelhante, embora os objetivos possam ser diversos. O Ateliê Fidalga,
por exemplo, idealizado pelos artistas plásticos Sandra Cinto e Albano Afonso,
em São Paulo, reúne artistas que trabalham com diferentes técnicas e um
procedimento básico: levam suas ideias ou esboços às reuniões semanais para
serem analisados pelo coletivo, e receber críticas e sugestões antes de serem
executados ou finalizados. É o coletivo que responde também pela organização
das exposições e divulgação dos trabalhos. Esse tipo de conduta tem ganhado
cada vez mais seguidores a partir dos anos 1990 e garante uma série de
vantagens que os métodos tradicionais de produção já não garantem mais:
autonomia de criação, equivalência de funções, mútua interferência nas
instâncias criativas, maior independência em relação a
produtor/curador/gravadora e ao mercado, gestão própria de recursos, entre
tantos outros.
No teatro o processo colaborativo ganhou contornos mais definidos e uma pesquisa
formal e acadêmica a partir dos trabalhos do Teatro da Vertigem, de São Paulo,
nos anos 1990. Trata-se, a nosso ver, de um processo que tem como antecedentes
imediatos a prática da criação coletiva e a experiência do dramaturgismo
(NICOLETE, 2005). Desta, herdou a pesquisa e a presença de alguém responsável
pela dramaturgia na sala de ensaio. O dramaturgista atua muitas vezes como
“braço-escritor” do diretor, aliando a criação dos intérpretes, os elementos
pesquisados, a visão do diretor e a sua própria na escrita do texto a ser
enunciado em cena. Da criação coletiva o processo colaborativo parece ter
herdado, em muitos casos, a concretização de um desejo grupal, que leva à
pesquisa conjunta e à execução de múltiplas funções com interferências mútuas,
de modo às linhas autorais esmaecerem em nome da assinatura coletiva.
À parte as vantagens todas do coletivo criador, talvez decorra dessa segunda
ascendência – a da criação coletiva - o fato de muitos dos espetáculos frutos
de processo colaborativo receberem críticas desabonadoras em relação à
dramaturgia. Melhor dizendo: ao assumir a influência direta da criação coletiva
talvez devêssemos aprimorar seus “métodos” - e aqui vão comentários
estritamente referentes à elaboração do texto a ser enunciado.
Cartaz do espetáculo "Geração 80", criado em processo colaborativo Dramaturgia: Adélia Nicolete 2000 |
Ao levarmos em conta o contexto em que a criação coletiva se deu
mais intensamente no Brasil – final dos anos 1960 até princípio dos
1980 – poderemos notar que o procedimento (processo) trazia um peso de
transgressão, inovação e vitalidade tão grande e necessário que,
compreensivelmente, se sobrepunha, muitas vezes, à questão estética. Dado o
contexto, o teatro da militância, o teatro feito com operários e os grupos
amadores em geral estavam menos preocupados com a forma final de seu trabalho que
com o processo de pesquisa, atuação comunitária, democratização do fazer
artístico, expressão de pensamento e tantas outras necessidades e motivações.
Consequentemente, público e crítica do período, movidos pelos mesmos
impulsos, praticamente desconsideravam os possíveis e frequentes “defeitos”,
porque a comunicação se estabelecia menos por canais estéticos que ideológicos
ou empáticos. Dessa forma, um aspecto meio “sujinho” ou “descosido”, que
poderia ser visto como um problema dramatúrgico, ganha status de “charme”, de
“it”, de resíduo do processo – este o protagonista.
Mudado o contexto, acessadas novas formas e procedimentos artísticos, faz-se
necessário investigar o por que da permanência de certas falhas.
Em primeiro lugar é preciso levar em
consideração que, assim como havia diferenças de abordagem da criação coletiva
pelos grupos, o processo colaborativo pode variar também de acordo com uma
série de fatores. Podemos elencar o nível de experiência dos participantes, o tempo
disponível, as condições econômicas e físicas de trabalho, entre outros
(NICOLETE, 2005). Sendo assim, a presença de um dramaturgo experiente, por
exemplo, pode fazer toda a diferença na condução e no acabamento dramatúrgico
de um espetáculo. Assim como um prazo mais flexível para pesquisa intelectual e
cênica. Ou seja, torna-se difícil fazer um diagnóstico geral a respeito do
assunto.
Outro aspecto a se considerar é a formação do dramaturgo. Se entre os anos
1960-1980 a formação dramatúrgica era, em grande parte, empírica ou auto-didata
devido à ausência de cursos formais, temos visto, desde o final da década de
80, um aumento significativo de cursos, oficinas e, por isso, de dramaturgos
“formados”. São eles responsáveis pela renovação da dramaturgia brasileira nos
últimos tempos – quando ainda se afirmava que não havia mais autores
nacionais. Porém, convém uma pergunta: que tipo de formação é necessária
para um dramaturgo que se disponha a atuar em processo colaborativo? Seria a
mesma do autor de gabinete? Há um perfil adequado para cada tipo de processo?
Pode haver migração de um dramaturgo de gabinete para o processo colaborativo?
Este procedimento se adéqua a um texto de contornos dramáticos ou é preciso que
se busquem novos enfoques?
A experiência diz que um dramaturgo de gabinete pode atuar satisfatoriamente em
processo colaborativo. O trabalho de Luís Alberto de Abreu junto ao Teatro da
Vertigem e ao Grupo Galpão confirma a hipótese. É certo que desde seus tempos
amadores Abreu dialoga com a cena. Mas é também certo que alguma “marca” de sua
dramaturgia está impressa tanto em um quanto em outro espetáculo daqueles
coletivos (NICOLETE, 2005). Ocorre que a presença de um dramaturgo
“profissional” na equipe pode causar a impressão de maior segurança e
estabilidade – sensações caras quando se trata de um processo tão instável e
imprevisível quanto o colaborativo. Esse suposto “profissionalismo” pode, por
sua vez, dar ao dramaturgo maior “autoridade” junto ao grupo na hora de argumentar
sobre determinadas soluções, e a configuração pode vir a ser mais uniforme do
ponto de vista dramatúrgico.
Material de divulgação do espetáculo "Poto segredo. Primeiros fios" - Grupo Pontos de Fiandeiras Dramaturgia em processo colaborativo: Adélia Nicolete 2013 |
E o dramaturgo iniciante? Que dificuldades enfrenta nesse tipo de
processo? Em primeiro lugar sua formação é, na maioria das vezes, dramática. Os
cânones consagrados como principal referência tendem a conduzir a soluções
vinculadas à presença de um enredo reproduzível, personagens e conflitos
definidos, clímax, desenlace – soluções limitadas quando se trata de uma
dinâmica criativa capaz de levar a outro tipo de resolução. É como se
tentássemos adequar um material com determinada maleabilidade a um molde que
não lhe dá a melhor conformação ou não lhe explora suas características mais
pulsantes.
Este dramaturgo iniciante encontra também dificuldade no que se refere ao
próprio trabalho em grupo. Condicionado, em geral, ao trabalho solitário, em
que é o senhor da obra em sua totalidade – da ideia à formatação final – ao se
ver inserido em um ambiente de “promiscuidade criativa” (ARAÚJO, 2003) tende a
acionar mecanismos de defesa que, pelo menos a princípio, podem colocá-lo à
parte do processo. Por isso cremos que uma formação adequada ao dramaturgo de
hoje deveria levar em conta o desvelamento do processo criativo e a reflexão grupal
sobre ele, prática comum nos ateliês de escrita em língua francesa. Ao ter sua
ideia e seu texto analisados e discutidos em grupo por outros autores ou mesmo
iniciantes, além de aprimorar o trabalho, proporciona ao dramaturgo uma
experiência de troca, de mútua interferência, de sair do próprio universo e
mergulhar no universo criativo alheio, entre outras (NICOLETE, 2010). Isso pode
prepará-lo mais adequadamente para um processo como o colaborativo, que exige
desprendimento, análise, visão de conjunto, crítica em perspectiva, seleção de
material e de sugestões, por exemplo. Que exige um fazer e refazer constante,
um abrir mão de grandes achados poéticos em nome da concretude da cena (ABREU,
2003).
Esse aprendizado nos parece necessário porque uma das críticas mais recorrentes
ao resultado dramatúrgico do processo colaborativo é o excesso - como se todos
os criadores tivessem de ser contemplados no texto final. Como se ao dramaturgo
coubesse tão somente “costurar” as criações alheias – por vezes discrepantes –
tendo o cuidado ético (e talvez ideológico) de processar equitativamente as
contribuições de cada criador, mesmo que não tenham tanta consistência ou
significado no conjunto. Por isso, um aprendizado coletivo já em sua formação,
poderia dar ao dramaturgo a experiência da escuta, do aproveitamento criterioso
de material sugerido por outrem e, principalmente, a noção de sua autonomia em
relação às contribuições do grupo.
Aliado a isso, um outro fator sinaliza a diferença entre processos: a
convivência do grupo. Um coletivo que atua há um certo tempo junto difere, no
processo, de outro que engatinha na criação compartilhada? Parece-nos que sim.
A afinação entre os parceiros que o convívio tende a proporcionar leva, à parte
os conflitos também gerados pela intimidade, a certa sintonia criativa, como se
uns “lessem o pensamento” dos outros, de modo que as respostas aos estímulos
podem vir mais rápidas, os acordos ou os enfrentamentos podem se dar mais
objetivamente. Um dramaturgo residente, como ocorre em algumas companhias,
talvez alcance um aperfeiçoamento cada vez maior a cada trabalho.
Por outro lado, a questão das críticas à dramaturgia colaborativa nos leva,
necessariamente, a uma visão mais abrangente da situação. É preciso lembrar que
a deposição do texto como elemento central de uma montagem e sua disposição no
mesmo patamar das outras instâncias emissoras de sentido, traz à reflexão a
noção de uma dramaturgia da luz, da interpretação, da cenografia, da direção e
assim por diante. E se há um texto a ser lido pelo espectador em cada uma
dessas áreas não seria recomendável, então, um aprendizado, ainda que mínimo,
de dramaturgia para todos esses criadores/autores? Não seria mais produtivo,
não traria melhor resultado dramatúrgico final se atores, diretor, cenógrafo,
figurinista tivessem noções de dramaturgia? Não a dramaturgia acadêmica,
reverente à tradição, mas a experiência dramatúrgica da imaginação, da
concepção, da organização, da composição, da harmonização de elementos com
vistas a uma escrita que, paradoxalmente, pode nem vir a ser escrita/enunciada!
A experiência com diversos tipos de materiais textuais desvinculados de padrões
dramáticos, como narrativas, depoimentos, documentos, tiradas, formas breves em
geral (NICOLETE, 2010).
Esta reflexão traz, necessariamente, a reboque uma outra. O ator vem sendo
formado para um processo que exige dele bem mais que a interpretação de um
papel previamente construído? E o diretor? Sua atuação leva em conta os demais
criadores ou insiste em um papel de compositor e regente de uma partitura por
ele previamente definida? O cenógrafo, o iluminador, o figurinista, por sua
vez, vem sendo preparados para opinar criativamente sobre algo ainda em construção
ou permanecem aguardando uma melhor definição da cena para atuar criativamente?
E os demais artífices? São questões importantes e que merecem uma reflexão mais
alentada porque, em geral, se critica a dramaturgia, mas se esquece de que ela
é também a configuração verbal de criações várias. E se essas criações não
trouxerem em seu bojo um material limpo e bem cosido, mais dificilmente
resultarão em excelência estética.
É notável a incorporação de alguns paradigmas cênicos nos textos teatrais
elaborados no coletivo, o que pode ser verificado, por exemplo, em O
Livro de Jó, de Luís Alberto de Abreu, realizado com o Teatro da Vertigem
(FERNANDES, 2010). Sendo assim, ao dramaturgo não seria benéfico se, desde sua
formação, tivesse contato por mínimo que fosse com as demais áreas?
Enfim, como foi dito no início, tentamos apontar alguns motivos que justifiquem
as falhas encontradas na dramaturgia em processo colaborativo. Causas de origem
estrutural, grupal ou da própria formação dos artistas. E uma das soluções nos
parece que pode ser encontrada, principalmente, em uma pedagogia que vise à
preparação e ao aperfeiçoamento do trabalho criativo coletivo em todas as áreas
de produção de um espetáculo.
Bibliografia
ABREU, Luís Alberto de. Processo colaborativo : relato e reflexões sobre
uma experiência de criação. Cadernos da ELT, Santo André, v.1, n.0, p.
33-41, mar. 2003.
SILVA,
Antonio Carlos de Araújo. A gênese da
vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. 2003. 192p.
Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade
de São Paulo.
FERNANDES,
Sílvia. Teatralidades contemporâneas. São Paulo : Perspectiva, 2010.
NICOLETE,
Adélia. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. 2005.
Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
______.
Criação coletiva e processo colaborativo : algumas semelhanças e diferenças
no trabalho dramatúrgico. Sala preta. São Paulo : v. 2, n. 1, p.
318-325, 2002.
______.
Fazer para aprender : a prática dos ateliês de escrita dramática em língua
francesa. ANAIS do VI Congresso da
ABRACE, 2010.
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