Adolf Wölfli e sua trombeta de papel - 1926 Fotógrafo não identificado |
Para Carlos Vinícius
por sua pesquisa sobre artistas visionários
Meu primeiro contato com a obra de Adolf Wölfli foi em 2015 em uma exposição no American Folk Art Museum de Nova York: "When the curtain never comes down". Suas obras dividiam espaço com trabalhos de outros artistas diagnosticados com algum tipo de distúrbio psíquico. Como o título da exposição anunciava, eram artistas em tempo integral, vários deles internos em manicômio, para quem a composição estética constituía o motivo da existência.
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
Wölfli nasceu em Berna, Suíça, em 1864. Caçula de sete irmãos, teve uma infância marcada pelo abandono e pela violência. Seu pai, alcoólatra e delinquente, foi preso várias vezes até que deixou a família quando Adolf tinha cinco anos. Sozinha para manter a casa, a mãe trabalhou como lavadeira e mais tarde tomou o rumo do interior levando apenas o menino mais novo consigo. Ambos atuaram como mão-de-obra nas fazendas em troca de comida e abrigo, muitas vezes separados um do outro.
Adolf Wölfli - "The St. Adolf Cathedral in Band-Wand" 1910 |
Aos dez anos Adolf viu-se
órfão de mãe e não teve outra saída que não continuar na lavoura e em outros pequenos
trabalhos. Sofreu maus tratos, foi abusado sexualmente e cresceu em abrigos
estatais. Mesmo com tantas dificuldades, conseguiu completar a educação
báscica em 1879.
Adolf Wölfli - "General View of the Island of Neveranger" 1911 |
Aos dezoito anos Wölfli apaixonou-se
pela filha de um rico fazendeiro, mas sua condição social impediu que o
relacionamento fosse aprovado pelos pais da moça. Desiludido, o jovem retomou o
rumo de Berna.
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
Na capital, juntou-se
brevemente ao exército, quando uma sequência de tentativas de abuso sexual de garotas enviou-o à prisão por dois anos. Ao ser libertado e com dificuldade de encontrar um trabalho formal, ocupou-se como jardineiro e coveiro.
Com o passar do tempo seu comportamento tornou-se cada vez mais estranho e agressivo até que em 1895, depois de nova tentativa de estupro, foi enviado ao Manicômio de Waldau, onde permaneceu por 35 anos, até sua morte.
Adolf Wölfli |
Nos primeiros anos de internação, Wölfli mostrava-se às vezes violento e incontrolável, ocasiões em
que era levado à solitária. Certa vez, em 1899, chegou a usar a mesa de cabeceira
para derrubar a porta da cela, tal a sua fúria, e com a madeira da porta quebrou
a janela do corredor que o levaria à liberdade. No entanto, foi encontrado na
manhã seguinte, imóvel diante da possibilidade de fuga. Nesse ano começou a desenhar.
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
Primeiro recebia apenas um
lápis preto por semana, esgotando-o rapidamente. Ao perceber que o desenho e a
escrita acalmavam-no, passaram a aumentar seu suprimento de materiais. No Natal, por exemplo, recebia uma caixa de lápis de cor, esgotada em duas ou três semanas. Contentava-se, então, em trabalhar com tocos de poucos milímetros e até com as pontas que sobravam, habilmente presas entre as unhas.
Seus suportes eram papel jornal, usado em toda sua extensão, e até mesmo papeis de embrulho ou qualquer outro papel de embalagem, solicitados aos guardas e aos companheiros de manicômio.
Trabalhos da fase inicial não foram preservados. Os desenhos mais antigos datam de 1904 e foram feitos em lápis preto. A cor só veio a aparecer em suas criações em 1907.
Adolf Wölfli - "The Assizes of the Middle-Land, The Shah of Canton Anger-Valley-Hall, Negre" 1904-1914 |
Adolf Wölfli |
O ano de 1907 foi decisivo para Wölfli, pois marcou a chegada do doutor Walter Morgenthaler a Waldau. Jovem psiquiatra residente, logo notou o talento do interno e não poupou esforços em estimulá-lo, estudá-lo e divulgar seu trabalho fora da instituição. Em 1921, por exemplo, Morgenthaler apresentou um estudo da obra de Wölfli e expôs alguns de seus desenhos em livrarias de Berna, Basileia e Zurique.
Há notícias de que o caso atraiu o interesse de Gustav Jung e outros psiquiatras, bem como de artistas como André Breton, M. Oppenheim e Jean Dubuffet.
Adolf Wölfli - "Gramophon" |
Prolífico, Wölfli trabalhou continuamente até sua morte, chegando a criar uma autobiografia fictícia tecida pela conjugação de textos, desenhos, colagens e composições musicais sui generis e que, quando empilhada, mediu quase seis metros de altura. Nela o artista recriou a infância e vislumbrou um futuro glorioso a partir de uma mitologia pessoal. Tal foi a impressão causada pela obra que o surrealista Breton a descreveu como “uma das três ou quatro obras mais importantes do século XX”.
Adolf Wölfli - "Irren-Anstalt Band-Hain" - 1910 |
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
"Do berço ao túmulo", sua autobiografia, começou a ser escrita em 1908. Desenhada folha por folha, num total de 2.970 páginas, resultou em nove volumes onde o artista figura como Santo Adolfo II, aquele se aventurou por várias terras. Há, por sinal, diversos mapas a descrever detalhadamente os lugares visitados.
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
Em seus escritos, Wölfli usava vocábulos estrangeiros e chegou a recriar o alfabeto para formar novas palavras, o que veio a formar uma espécie de linguagem secreta que só ele compreendia e dominava. Tal linguagem contou igualmente com os números, usados para expressar ideias e registrar suas músicas. Segundo ele, "Oberon" seria o número insuperável a não ser por "Zorn" (raiva), maior que tudo.
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
Entre 1912 e 1916 Wölfli criou "Livros geográficos e algébricos", uma coleção de mais de 3 mil páginas desenhadas e escritas com números e notas musicais - uma espécie de testamento para seu sobrinho Rudolf Wölfli.
A seguir, deu início à série denominada "Arte-Pão" - desenhos em uma única folha destinados à venda e à consequente compra de mais materiais artísticos. Embora preferisse os trabalhos maiores, recorreu a esse expediente até o final da vida, servindo-se dele também para presentear amigos e admiradores.
Adolf Wölfli - "Packard" - 1927 Um exemplar de Arte-Pão |
Foram essas obras que Morgenthaler publicou em sua monografia em 1921 e que propiciaram o interesse de Hans Prinzhorn - um psiquiatra e historiador da arte. Entusiasmado com os trabalhos de Wölfli, Prinzhorn apresentou-os a Jean Dubuffet, que não só adquiriu algumas criações em sua viagem à Suíça como associou-as à Art-Brut. Não bastasse, exemplares da Arte-Pão foram expostos na Documenta 5, de Kassel, em 1972.
Adolf Wölfli - "Hautania and Haaverianna" 1916 Exemplo de Arte-Pão |
Atuante na clínica até 1919, Morgenthaler estimulou Wölfli a trabalhar em paineis e decorações e, em 1922 foi a vez de atrair a atenção do professor Hermine Marti, que a veio a se tornar admirador, colecionador e mecenas do artista.
Adolf Wölfli |
No que se refere à música, ela é conteúdo de muitos dos desenhos de Adolf Wölfli, que chegou a assinar como "Compositor" e não como pintor. São trabalhos que se distanciam da notação musical conhecida no que se refere às notas e, no que tange ao ritmo, à duração ou aos instrumentos, as indicações estão escritas à parte no desenho. O fato é que essas "composições sonoras" são, na verdade, composições visuais.
Na velhice, Wölfli executava suas composições numa trombeta de papel. Adaptações de suas músicas podem ser ouvidas na trilha sonora do documentário abaixo, que retrata parte de seu trabalho.
No vídeo a seguir, com trilha de Gregorio Allegri, temos outra seleção de obras de Adolf Wölfli:
E, finalmente, o livro "Creator of the universe", apresentado em vídeo:
Após a morte de Wölfli, em 1930, suas obras foram conservadas no Museu da Clínica Waldau. Mais tarde, criou-se a Fundação Adolf Wölfli com a finalidade de preservar sua arte para as futuras gerações. Atualmente a coleção está sob a guarda do Museu de Belas Artes de Berna.
Adolf Wölfli |
Adolf Wölfli |
A quem se interessar, há muito mais que se descobrir a respeito de Adolf Wölfli. Uma infinidade de obras estão na internet, a grande maioria sem os devidos títulos e datas, bem como vídeos, composições e materiais a respeito do artista. Todos em idioma estrangeiro.
Até onde pude verificar, ainda que de modo sucinto, nosso blog talvez seja o primeiro a divulgar esse talentoso artista em língua portuguesa. Uma honra para mim.
Adélia Nicolete
Mais informações acerca de Adolf Wölfli, sua biografia e sua obra (fontes dessa postagem), podem ser acessadas no
ROUSSEAU, Valérie. Adolf Wölfli. In: When the curtain never comes down: performance art and the alter ego. New York: American Folk Art Museum, 2015. p. 128-131
Adélia que alegria! Quanta vida. Me ligou a tantas e tantas outras vidas. Me lembrou tanto Samico, me levou a Hundertwasser, me levou ao Bispo, me levou a Bachelard e sua imaginação poética.
ResponderExcluirFico a pensar, o quanto a vida na intensidade das forças insiste num labirinto de imaginação mitológia. Uma multiplicidade intricante nascida de um indivíduo a expressar na matéria os possíveis si. Quão belo podem ser os imaginários nascentes a todo momento e vinculados a terra, a matéria.
Rabiscar, bordar, cantar. Mesmo no duro, ou melhor, junto ao duro.
Ele era isso. Um compor a si. Um compor a narrativa. Ouvir a música já é conosco.
Vinicius
Que bom que AW te encantou, Vinícius. Que poder! Espero que possa enriquecer seu projeto para 2018. Um abração de boa sorte pra ti.
ResponderExcluirObrigado Adélia por me apresentar esse artista. Gostei muito mesmo das reproduções dos desenhos que vi. Quantas maravilhas existem que sequer sabemos. Parabéns pela matéria. Instigante.
ResponderExcluirObrigada pela visita e pelo comentário, Paulo, querido. Cada trabalho de AW é algo sobre que se debruçar, meditar, analisar. Dentre tantas reflexões que ele me sugere, uma é sobre o ensino de arte, o contato com o mundo da arte desde cedo. Num tempo em que a medicalização tem substituído as terapias não é de se espantar as exposições proibidas, a censura, o menosprezo à arte e à cultura. Num tempo em que se quer zumbis, seres não pensantes, passivos, crentes e obedientesa a arte é ameaça. Beijão pra ti, meu lindo.
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