domingo, 18 de dezembro de 2016

"Narradores de Javé" - Histórias de Minas




O premiado “Narradores de Javé”, dirigido por Eliane Caffé e roteirizado em parceria com Luís Alberto de Abreu, estreou em 2003. 

Em linhas gerais, narra-se no filme o esforço de uma comunidade que, ao receber a notícia de que Javé será inundada para a construção de uma hidrelétrica, decide registrar em livro a grande importância de sua história e, com isso, evitar a inundação. Para tanto, convocam o carteiro Pedro Biá e o orientam a entrevistar possíveis descendentes dos fundadores e estes, um a um, dão a sua versão dos fatos – todas diferentes. Embora as narrativas não evitem o desaparecimento da cidade, acabam por fortalecer no grupo o sentimento comum de pertença, de modo que partem para a criação, eles mesmos, de uma nova História.

Dentre as tantas pesquisas para sua realização, foi feita em 1998 uma viagem pelo interior de Minas Gerais da qual tive a oportunidade de participar. Uma equipe em busca de narradores. Na época cursava uma disciplina na pós-graduação em Artes Cênicas, na ECA-USP, sob orientação da professora Maria Lúcia Pupo, de modo que aliei a viagem à escrita de minha monografia: “Histórias de Minas - relatos de viagem”.

Passados quase vinte anos, localizei o material, já sem as respectivas fotografias, infelizmente. Considerei que seria útil compartilhá-lo, por isso digitalizei e agora disponibilizo para possíveis interessados nas fontes inspiradoras do filme, bem como acerca de narrativas orais. Um mestrado, um doutorado e muitos escritos depois, estranho a espontaneidade do texto, mas talvez resida aí um de seus valores. 


O filme:
Narradores de Javé

A monografia:
Histórias de Minas - relatos de viagem



Adélia Nicolete

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Manual de Sobrevivência para Dramaturgos Otimistas - 2. Aliciamento


Paulo Ricardo Berton - Dramaturgo e Professor da UFSC
Idealizador e curador do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)


A imagem do dramaturgo como alguém do sexo masculino, isolado em seu escritório diante de um teclado e rodeado por livros, senhor da criação de um texto por ele imaginado e organizado do princípio ao fim é praticamente puro exercício de ficção.

Cada vez mais as mulheres ocupam-se da escrita dramática e a ideia de isolamento completo, embora não totalmente abolida, cede lugar à permeabilidade das relações reais e virtuais, à interferência da tecnologia e seus acessos, do vai-vem cena-texto-cena. Dramaturgo e dramaturga vêm-se, desde o início do processo, em constante estado de negociação com intérpretes, com a direção, com demais criadores e criadoras e até com o público. Todo esse contingente, por sua vez, coloca-se em “estado de dramaturgia”, como sugere Bernard Dort, ou seja, exerce por um período a “função dramaturgia” na medida em que elabora ações que visem ao estabelecimento de um diálogo, de uma comunicação. *

Aquele quadro sofreu uma significativa transformação: autoras e autores não se encontram mais no vértice da criação. No vórtice é que se posicionam agora. No equilíbrio precário das dinâmicas compartilhadas, na polifonia criativa, numa horizontalidade que, observada ao microscópio, é gráfico de eletrocardiograma.

Camila Bauer - Diretora, Pesquisadora e Professora da UFRGS
Curadora do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)
















Todo esse introito para justificar, mais uma vez, a importância de eventos como o Seminário Brasileiro de Escrita Dramática – Reflexão e Prática, em sua segunda edição esse ano. Durante cinco dias nós, dramaturgas e dramaturgos, pesquisadoras e pesquisadores, professores e professoras, estudantes de escrita dramática, editores, pudemos conhecer nossos pares e dialogar com eles nas diversas mesas e discussões, conviver, comungar, enfim, o ofício.

Manoel Candeias - Dramaturgo, Pesquisador e
Professor da Faculdade Célia Helena

Curador do SBEDR
(Foto: Galeria do I SBEDR)























Ainda somos poucos. Pouco se sabe de nós. 

Quem sabe o que é dramaturgia e para quê “ela serve”? Mesmo dentre os que fazem teatro, há uma ideia clara do que é dramaturgia, de quais as funções de um dramaturgo?  Num país como o nosso, com um grande número de analfabetos funcionais, ter acesso a vocábulos como esse (e a seus significados) é de um requinte extremo.

Mas o que dizer do poder público? Fartos e “diplomados”, quantos de nossos representantes, se colocados diante de um dramaturgo saberão o que ele faz? Tanto que as pastas municipais na área da cultura, quando existem, servem como moeda de troca dos acordos eleitorais, geridas por profissionais de outros setores. As verbas para educação e cultura, em todos os âmbitos, são as primeiras a serem racionadas – vejamos a Proposta de Emenda Constitucional nº 55, recém aprovada, cujo apelido de “PEC do Fim do Mundo” dá bem o tom trevoso que nos aguarda. E para coroar tivemos a extinção do próprio Ministério da Cultura em 2016, reintegrado tão somente por força de protestos e ocupações.

Ocupação da Funarte em São Paulo
(Foto: Mauricio Pisane / FramePhoto / Estadão Conteúdo)



No estado de São Paulo diversas Oficinas Culturais fora do centro fecharam as portas, programas artísticos de longa data e efetiva atuação foram sucateados, agentes de cultura, demitidos. Ações que levaram tanto tempo para se integrar às comunidades e constituir acessos qualificados, dissolvidas. 

Em meio a uma forte sensação de terra arrasada, como sobreviver e manter aceso o otimismo? Parece-me que um segundo tópico do nosso Manual é o Aliciamento, em diversas de suas definições. Quanto mais pessoas souberem do que trata a dramaturgia e de como ela está presente não só no teatro, na TV e no cinema, mas também na publicidade, no noticiário e nos cultos religiosos, por exemplo, mais a nossa função ganhará notoriedade e mais amplo sentido.

Portanto, como “ato ou efeito de atrair, seduzir”, o aliciamento para a dramaturgia passa pela divulgação dos mecanismos dramatúrgicos/fabulares presentes no dia-a-dia. Pela revelação dos dispositivos geradores de empatia e de consequente consumo, seja de bens seja de ideologias e comportamentos. Tal “revelação” é bom que esteja a cargo de dramaturgos e dramaturgas, assim denominados, assim reconhecidos, capazes de trazer a "dramaturgia" para o vocabulário comum do cidadão.

Como “angariação de elementos para formação de um grupo”, o aliciamento para a dramaturgia passa pela ampliação do número de interessados pela atividade. Isso pode se dar em cursos e oficinas específicos, mas também nas escolas formais em todos os níveis com a leitura e análise de peças; com a inclusão da literatura dramática em feiras e mostras literárias, não só para a venda de livros, mas para o diálogo com dramaturgas e dramaturgos. Trabalhamos sim com a escrita, mas não somos escritores genéricos, temos uma especificidade: a escrita verbal ou não para a cena e é preciso que isso fique claro se queremos que nossa profissão sobreviva como tal.

O dicionário Houaiss define ainda aliciamento como “alistamento de adeptos para determinada causa” o que, a meu ver, pode significar a arregimentação de pesquisadores da área. Quantas são as publicações nacionais sobre dramaturgia? Durante muito tempo a pioneira Renata Pallottini, poeta, dramaturga e professora, foi a única nas estantes com seus dois títulos: “Introdução à dramaturgia” e “Construção do personagem”. Muito lentamente temos cavado espaço para o tema, em especial nas publicações periódicas ou em edições restritas, financiadas por coletivos teatrais. Ainda assim é pouco e as pesquisas acadêmicas só recentemente se debruçam sobre os processos criativos em dramaturgia, já tão distantes do quadro inicial dessa postagem, bem como da forma dramática convencional.



Renata Pallottini
(Foto: internet)

Tais ações podem nos levar a uma última definição positiva de aliciamento, aquela que implica no “ato ou efeito de instigar; incitamento”. A apropriação dos meios expressivos da escrita dramática e do teatro, quando devidamente orientada, tem o condão de despertar a crítica e, consequentemente, gerar no indivíduo o desejo de mudança do estado das coisas. Para tanto, a Socialização do conhecimento, próximo tópico do nosso Manual, torna-se necessária.

Instigar e incitar para a dramaturgia e para o teatro é, sem dúvida, aliciar para a transformação de si mesmo e do mundo, daí o sucateamento das ações culturais por parte do poder público. Afinal, como anunciou Darcy Ribeiro em 1977: "a crise da educação do Brasil não é uma crise, é um projeto". Um projeto de sufocamento e de embotamento das vontades, que só com muito otimismo é possível combater.


Adélia Nicolete



* Sobre o "estado de espírito dramatúrgico" e a "função dramaturgia" ver a seguinte postagem.








segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Manual de Sobrevivência para Dramaturgos Otimistas - 1. Paixão




O Seminário Brasileiro de Escrita Dramática – Reflexão e Prática é um encontro anual idealizado e realizado pelo professor Paulo Ricardo Berton na Universidade Federal de Santa Catarina.  A curadoria é dividida com os professores Camila Bauer (UFRGS) e  Manoel Candeias (Faculdade Célia Helena) e a infraestrutura conta com o trabalho de estagiários e bolsistas. Durante cinco dias as mesas temáticas de reflexão e debate, as comunicações de pesquisa, as leituras dramáticas e oficinas, os lançamentos e vendas de livros visam a colocar em foco a escrita dramática nos diversos veículos.

Quando recebi o convite, em maio desse ano, o tema proposto para a mesa a ser dividida com o diretor e dramaturgo Diogo Liberano eram os coletivos de dramaturgia. Comecei a planejar minha fala a partir de um apanhado histórico e da experiência pessoal para, em seguida, fechar com os coletivos gerados em cursos e oficinas e o quanto isso representa para a nossa área de atuação. Passados alguns meses, porém, o contexto brasileiro (e mundial), que já não era dos melhores, tornou-se tão problemático e com perspectivas tão alarmantes que o próprio título da mesa foi alterado e nossa reflexão ganhou diferentes contornos: Manual de Sobrevivência para Dramaturgos Otimistas: Pequenos Coletivos.


Logo pensei em Ítalo Calvino e suas propostas para a Literatura no espetaculoso século XXI *. Inspirada nele (e sabendo-me  incapaz de conseguir sequer uma aproximação), alinhavei uma rapsódia com as minhas "propostas" para o Manual e convidei alguns autores/cúmplices para que, juntos, formássemos um pequeno coletivo em torno do tema.

Ítalo Calvino - para todos os tipos de Manuais
(Foto: internet)



Como o texto ficaria muito grande, cada uma das ideias - Paixão, Aliciamento, Socialização, Diversificação, Formação e Resiliência - será apresentada em postagem própria.

Agradeço desde já eventuais leituras e uma boa dose de indulgência.


***


1. Paixão

Penso que o primeiro elemento a constar de um Manual de Sobrevivência, não só do Dramaturgo como também de toda e qualquer categoria, seja a Paixão. Exatamente. Não o Amor. A Paixão, em seus mais variados aspectos, o de sofrimento intenso entre eles.

*

«li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega"


(Herberto Helder - 1930-2015)


Herberto Helder - paixão recente
(Foto: internet)

*


Qual é a nossa paixão? Eis a pergunta fulcral. Inspirados pelo poeta português Herberto Helder, busquemos a resposta.

O que nos mantém vivos, fazendo teatro? Mesmo quando nos deixa cansados, nos faz sofrer, nos dá prejuízo financeiro. O convívio com os pares, loucos e apaixonados como nós, capazes de refazer um trecho ou um texto mil vezes - obcecados por uma vírgula não percebida, um “caco” não autorizado? Ou o convívio com o grupo e suas dinâmicas especializadas em tirar-nos de nós mesmos? O espírito gregário – é ele que nos move?

Ou será o jogo da linguagem e seus desafios permanentes? O que/como (não) expressar? Como/onde (não) tocar (n)o Outro? A ideia de impossível tradução, a palavra inexistente, os mergulhos abissais no dicionário? A rima, o ritmo, o rito diário diante da tela/página em branco - é essa a nossa tara?

O que nos mobiliza, nos tira do eixo? Qual a nossa cólera - a que transparece nos olhos? O que ansiamos ver revelado? O que em nós mesmos e lá fora anseia pelo desbordo? 

É a resposta a isso o que dá sentido à nossa arte. O que nos define perante nós mesmos e perante o coletivo de que participamos, seja ele de dramaturgos ou de criadores da cena. Perante o público. Porque a paixão vetoriza, nutre e contagia. 

Portanto, quem sabe no nosso Manual não caiba uma norma de aliciamento/contaminação - nosso próximo item? Trazer mais e mais gente para o nosso lado da trincheira e assegurar que o teatro continue a existir e justifique, inclusive, a função do dramaturgo! Pois só quem faz teatro sabe o quanto ele é vital. Que o público, em algum momento, seja seduzido para a cena/vida, convencido de que talento e inspiração são importantes (ah! os mitos!), mas nada significam se não houver Paixão



Adélia Nicolete






* Trata-se do livro "Seis propostas para o próximo milênio" (Companhia das Letras). Calvino concluiu, na verdade, cinco conferências a serem proferidas na Universidade de Harvard. Em cada uma delas, abordou uma virtude que, segundo ele, só "a Literatura com seus meios específicos pode dar": Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade. A sexta, Consistência, foi apenas planejada, pois o autor veio a falecer. 



segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Dramaturgia em foco - uma rapsódia de autores





Em 2016 a Cia Teatro da Cidade de São José dos Campos completou 25 anos de atuação. Como forma de comemorar e de marcar ainda mais fortemente sua atuação regional, planejou uma série de ações ao longo do ano, contempladas no edital Proac Território das Artes. Várias frentes do fazer teatral foram atendidas e eu tive o prazer de atuar como curadora do projeto “Dramaturgia em Foco”, desenvolvido sobre os três pilares do ensino-aprendizagem em arte: conhecer, fruir e criar.


Durante quatro finais de semana ao longo do ano, pudemos conhecer vida e aspectos da obra de Jorge Andrade, Plínio Marcos e Luís Alberto de Abreu, dramaturgos escolhidos pelo seu reconhecido trabalho e pelo compromisso com o momento histórico.

Público reunido com o diretor e ator Tanah Corrêa (segundo à dir.),
convidado a falar sobre o amigo Plínio Marcos
(Foto: Naiara Sampaio)

Os estudos incluíram as influências e referências de cada dramaturgo, seus modos de criação, bem como Teoria e História da Dramaturgia.


Grupo reunido com Luís Alberto de Abreu, convidado a falar
sobre seu trabalho e sobre a influência
de Jorge Andrade e Plínio Marcos
em sua dramaturgia
(Foto: Naiara Sampaio)


















Os participantes puderam tomar contato com vários textos de cada autor e apreciar/analisar uma peça a cada módulo, escolhida de modo a suscitar diferentes discussões acerca da forma, do gênero e da técnica dramatúrgica.


Grupo durante análise da comédia "Masteclé", de Luís Alberto de Abreu
(Foto: Naiara Sampaio)















O terceiro encontro de cada módulo foi dedicado aos Ateliês de Dramaturgia, momento em que os participantes puderam exercitar a criação de cenas e materiais textuais individualmente, em dupla e em trio a partir de estímulos advindos do estudo de cada autor.


Grupos realizam transcriação de uma crônica
de Plínio Marcos em cena teatral
(Foto: Adélia Nicolete)

No último módulo estudamos a dramaturgia como rapsódia, segundo as proposições de Jean-Pierre Sarrazac. Para tanto, reunimos todos os textos escritos ao longo dos encontros a fim de operar com eles as possibilidades de recorte e colagem, montagem, fragmentação, repetição e vários outros elementos e recursos presentes na criação contemporânea.

Agradeço ao grupo pelo convite e a cada um/a dxs participantes e convidados. Foram momentos de troca não somente de informação, mas de experiência e de afeto. Encontros memoráveis.



(Foto: Naiara Sampaio)

Adélia Nicolete




















quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Ateliês de Dramaturgia



Participantes do Ateliê de Dramaturgia 
Projeto Quixote - FUNSAI

(Foto: acervo pessoal)

Se até bem pouco tempo a dramaturgia ainda era uma atividade solitária e o autor, responsável pela totalidade de uma escrita verbal orgânica e precisa (a peça teatral e fundamental a uma encenação), os modos de criação compartilhada, bem como o afastamento cada vez mais intenso da forma dramática, solicitam do dramaturgo contemporâneo uma proximidade com a prática viva da cena. Busca-se com os Ateliês de Dramaturgia abordados no presente depoimento uma pedagogia que corresponda a tais configurações.

Gênese
Em linhas gerais, pretende-se com os Ateliês de Dramaturgia o desenvolvimento de materiais textuais para teatro com base na apreciação e na eventual produção plástica, a serem discutidos entre os pares, reescritos o quanto se fizer necessário e testados em sua relação com a cena. O referencial teórico mais significativo foram os Ateliês de Escrita Dramática de países francófonos, mesclados a minhas experiências anteriores em cursos e coletivos de dramaturgia, bem como à prática docente. Dessa última é que veio o desejo de abraçar as artes plásticas à criação de textos para teatro.

Em 1993 ingressei no magistério superior em Artes e, como docente de iniciação ao Teatro e de Encenação, propunha, entre outros recursos, a criação de cenas a partir da apreciação de outras linguagens, fixando-me, com o tempo, nas artes plásticas. Grupos eram formados e, depois de pesquisa de obras e autores brasileiros, escolhiam-se telas figurativas para apreciação.


"Os retirantes" - de Cândido Portinari
uma das telas escolhidas para criação de cena

Em seguida, uma situação era identificada e, a partir daí, personagens, tempo e lugar. conflitos eram percebidos ou criados, assim como os antecedentes e o desfecho de tal situação, tudo com o objetivo de se criar uma versão teatral da tela escolhida. As cenas eram apresentadas, avaliadas pelos colegas e reelaboradas até se chegar a uma versão por escrito - tudo bastante inspirado pelos jogos teatrais de Viola Spolin e voltado à forma dramática.

Do ponto de vista pedagógico, o procedimento foi bem sucedido, tanto que o adotei também nas oficinas de dramaturgia ministradas até o início dos anos 2000, com pequenas modificações:  abertura para obras de arte estrangeiras e foco na criação de textos, sem a passagem para a cena.  Naquele período,  iniciei os estudos do processo colaborativo que resultaram na dissertação de mestrado "Da cena ao texto: dramaturgia em processo colaborativo", defendido em 2005, sob orientação da professora Sílvia Fernandes.


Da dissertação à tese foi um passo, na medida em que á reflexão sobre uma pedagogia da dramaturgia compartilhada veio se somar outra solicitação, a da criação de textos para além da forma dramática. Como parte dos procedimentos pesquisados, voltei aos anos 1990 e às artes plásticas, optando dessa vez pelo não-figurativo, por imaginar que ele nos afastaria da forma dramática com maior facilidade, o que veio a se confirmar. nasciam ali, em 2009, o que viriam a ser os Ateliês de Dramaturgia, sob orientação da professora Maria Lúcia Pupo.

Características

O termo “Ateliê” foi escolhido menos por referir-se aos ateliês franceses que pelo lugar em que o artista plástico opera com as materialidades para a produção de suas obras. 

Seleção e composição com imagens
Projeto Quixote - FUNSAI

(Foto: Adélia Nicolete)


Um dos princípios fundamentais da proposta é que a escrita é, ela também, uma operação com materialidades. A inspiração e o dom cedem lugar à composição, ou seja, ao trabalho pesado (mas instigante) de conjugação de elementos desde os mais básicos como os signos linguísticos, o vocabulário; os sinais gráficos e a pontuação, até a sonoridade, o ritmo e o tom, o formato e o suporte, as ideias, o conteúdo e sua configuração gráfica e assim por diante. 

Esse trabalho de composição da escrita verbal assemelha-se ao da escrita pictórica na medida em que se pauta igualmente pelas noções de equilíbrio/desequilíbrio, simetria/assimetria, contraste, volume, ponto de vista e perspectiva, por exemplo, além de procedimentos tais como recorte e colagem, justaposição, sobreposição, assemblages, montagem e tantos outros mais. Daí que, sempre que possível, procura-se não só apreciar as obras, mas experimentar composições plásticas em paralelo à composição verbal. Registro dos encontros, observações do cotidiano, retratos, descrições de estados internos ou mesmo planejamento de textos costumam ser bons estímulos à escrita pictórica.



Exposição de "grudados" - registros/protocolos dos encontros
Ateliê de Dramaturgia - FAINC

(Foto: Elaine P. Bombicini)


Um dos objetivos desse recurso é a busca de um hibridismo de linguagens, tão característico da arte contemporânea, desde o princípio da criação. É nesse aspecto que os Ateliês de Dramaturgia aqui descritos se diferenciam mais acentuadamente da experiência francesa e dos demais ateliês de dramaturgia que têm sido propostos atualmente.


Estrutura e procedimentos
Aspira-se a atender nos Ateliês pessoas interessadas em dramaturgia, qualquer que seja sua área de atuação ou suas pretensões profissionais. Se o indivíduo já é dramaturgo pode ampliar suas referências e se ainda não é, pode sentir-se motivado a prosseguir e se aperfeiçoar. Se atuar em outras áreas do fazer teatral, a experiência permitirá que ele se beneficie não só da escrita como da passagem do texto à cena. Caso não pretenda seguir nenhum desses caminhos, pode vir a tornar-se melhor leitor, melhor espectador e melhor “compreendedor” do teatro contemporâneo, como sugerido por Jean-Pierre Sarrazac.


Atrizes, dramaturgas, professores, poetas, designer
Ateliê de Dramaturgia - FAINC

(Foto: Adélia Nicolete)















A estrutura do Ateliê de Dramaturgia diferencia-se das oficinas e cursos em geral por uma série de aspectos. Em vez de aula são realizados encontros ou sessões. No lugar de um professor, a mediação é feita por um condutor ou coordenador, encarregado de planejar e conduzir o projeto como um todo. A função cabe a um dramaturgo experiente, que não tem a pretensão de ensinar, mas de oferecer condições e estímulos para que se dê a criação e, a partir dela, a reflexão e o aprendizado, sem a necessidade de hierarquias.

Em lugar de alunos, participantes ou escrevedores, como sugere Sarrazac. Tais denominações sugerem uma postura ativa, condição básica para que o trabalho se realize. Mais do que um grupo, um coro de participantes é formado e cabe a ele, antes mesmo do condutor, a análise dos textos resultantes dos exercícios, bem como sugestões para que sejam aprimorados ou mesmo modificados.

Diferente do coro grego, que se manifesta em uníssono, o coro de um Ateliê expressa vozes diversas, todas envolvidas, porém no mesmo processo. A cumplicidade alcançada graças aos desafios em comum permite que mesmo os iniciantes possam interferir na escrita uns dos outros, o que proporciona a experiência de criação compartilhada logo numa primeira instância, a da criação verbal.


Ateliês de Dramaturgia e Memória - coro de escrevedores
Museu Histórico de Mauá - SP

(Foto: Adélia Nicolete)


Um mínimo de cinco ou seis escrevedores é suficiente para que se forme um coro e a escrita possa beneficiar-se das trocas entre os pares. Como número máximo, sugere-se até quinze participantes: a grande quantidade de pessoas numa turma pode comprometer o andamento do trabalho, pois resulta em menos tempo disponível para se compartilhar os escritos e ouvir as considerações do coro.

Quanto à periodicidade, sugere-se a média de doze encontros, um por semana, e a carga horária de três horas ou mais, se possível, pois, de modo geral, cada sessão desenvolve-se em torno de três ações principais. Na primeira parte da sessão, os escrevedores são estimulados a apreciar coletivamente uma obra de artes visuais. Mais do que inspiração, ela é a fonte de onde brota uma série de possibilidades de escrita, pois é a partir dos elementos levantados nesta fase que dar-se-ão o planejamento e o desenvolvimento dos textos.


Apreciação de obra
Ateliê de Dramaturgia - Turma de pós-graduação - FAINC

(Foto: Adélia Nicolete)


O critério de seleção das obras a serem apreciadas é estabelecido pelo condutor em função do perfil do grupo, das propostas de texto a serem desenvolvidas e do andamento dos trabalhos. Os participantes são orientados a observar a obra e anotar as primeiras impressões e questões suscitadas. Em seguida, é feita a apreciação coletiva, onde mais aspectos são anotados.


Obra de Eymard Brandão analisada na abertura do
Ateliê de Dramaturgia - Galpão Cine Horto - BH


Durante a apreciação de um trabalho não-figurativo, procura-se não estimular a adivinhação de figuras ocultas ou de supostas narrativas. A apreciação será conduzida, pois, a aspectos tais como: lembranças suscitadas, impressões, atmosferas, sensações, bem como associações com cheiro, som, gosto, emoções, etc. Pode-se propor uma leitura a partir das decisões formais e materiais do artista: o que as formas transmitem? E as cores? Quais as sensações ligadas a elas? E as posições em que se encontram na tela? Espera-se que, com a prática, a apreciação se aprimore e acabe sendo feita quase sem as provocações do condutor. Pode-se também estudar os procedimentos do artista, visitar seu ateliê, etc. enfim, são muitos os caminhos possíveis. Todas as impressões e ideias são anotadas e formam o conjunto de elementos a que o participante irá recorrer para o planejamento e a escrita de seu texto.

A apreciação artística já faz parte da criação, não só pelos elementos com que irá motivar o texto, mas pelo movimento interno gerado em cada um – lembranças, ideias, associações que estabelecem de modo preliminar uma dinâmica criativa. Decorre daí a importância das ações previstas serem realizadas numa mesma sessão. A escrita quando elaborada em outro período, fora do encontro, desvinculada da apreciação, opera com dados concretos, mas sem o estado criativo gerado na ação grupal.


Cada um escreve onde e como preferirAteliê de Dramaturgia
Turma de pós-graduação - FAINC
(Foto: Adélia Nicolete)















A partir dos elementos levantados nas apreciações, passamos à fase da escrita. Para começar, os delimitadores. A forma do texto, o tempo disponível, o tamanho, o tipo de narrador e, a depender da experiência do grupo, até alguns complicadores como o lugar em que a ação deve se dar, o número de personagens, o tom, enfim. Longe de tolherem o processo criativo, os delimitadores costumam ser libertadores, bastando para isso que se mantenha um clima de desafio, de jogo.

É sugerida aos escrevedores uma sequência de ações a ser seguida em quase todos os textos: rever a obra de arte e o material anotado na apreciação, planejar o que se quer, selecionar os conteúdos com que se quer trabalhar; escrever, reler, revisar e finalizar o texto. Isso tudo a fim de se apropriar o máximo possível da atividade.

A teoria, a literatura dramática, a técnica, são abordadas a partir da prática da escrita, suas necessidades e os questionamentos suscitados, sem que haja, obrigatoriamente, um estudo teórico a priori. O coordenador faz o “parto” de textos que foram gestados por outrem, livres de modelos e sempre a partir da prática, estimulando e orientando o participante, desde o princípio, na busca pela complementação permanente de sua formação. Assim, podem ser lidos em sala ou recomendados textos não só de literatura dramática, mas de História, de psicologia e sociologia, de ficção, entre outros, bem como haver apreciação de filmes e fotografia, de música e dança, a depender do percurso do grupo.

Concluído o processo de escrita, na terceira parte da sessão ocorre a leitura dos textos a fim de compartilhá-los com os colegas e obter deles um comentário crítico, momento em que atua o coro de escrevedores. O contato com a escrita do outro é um bom exercício de alteridade para o participante, assim como ouvir seu texto com diferentes entonações, dicções e expressões mostra a ele uma variedade de abordagens, difíceis de se imaginar no momento da escrita.


Compartilhamento de intervenção poética em obra de Leonilson
Ateliê de Dramaturgia - FAINC

(Foto: Elaine P. Bombicini)


Nesta altura do processo os colegas podem sugerir alterações, abordagens diferentes, correções, sempre adotando-se o “e se”: “e se você acentuasse o tom cômico do texto?”, “e se o final fosse mais aberto?” e assim por diante. O “e se” relativiza as colocações, tirando o peso tanto do que se fala quanto do modo com que se é ouvido. Ao condutor cabe abordar aspectos que não tenham sido levantados durante a análise coletiva, esclarecendo dúvidas, oferecendo informações ou referências sobre algum tema, sugerindo leituras.

Os elementos levantados na análise, submetidos ao livre arbítrio do autor, auxiliam na reescrita. Contra o cansaço, a frustração, a perda da novidade, o mito do texto que nasce pronto, etc, é o exame paciente do próprio texto e a compreensão das análises do coro que fundamentam as versões seguintes.


A dramaturgia da cena
Ao final de um processo no Ateliê de Dramaturgia, pelo menos parte do material textual é levado a público para que se efetive como dramaturgia sob a forma de cena, de leitura ou como exposição do trabalho em processo.


Proposição de cena integrada à composição plástica
Ateliê de Dramaturgia UDESC


Não propomos a escrita de peças teatrais, mas de textos nos mais diferentes formatos – a que denominamos material textual – , a serem conjugados a outros materiais e às demais instâncias criativas da cena. É a linguagem teatral e o conceito de dramaturgia como rapsódia que vão transformar telegramas, cartas, notícias, depoimentos, relatos, poemas e outros tantos textos em teatro.

Um dos principais objetivos desse compartilhamento com o público é exercitar a passagem do texto à cena, aceitando seus desafios formais e caracterizando-o como dramaturgia, o que permite ao escrevedor verificar os problemas e as virtudes de sua escrita e a comunicação com o espectador, reconhecendo a satisfação ou insatisfação com os resultados obtidos. Finalmente, a comunicação do textos permite que a comunidade, os familiares e os amigos possam participar de algum modo da experiência ocorrida nos Ateliês.



Escrevedora em cena
Ateliê de Dramaturgia  - Turma de pós-graduação - FAINC
(Foto: Bernardo Abreu)


Em termos pedagógicos, trazer o trabalho para o centro do debate e ouvir o que o público tem a dizer implica em manter uma disponibilidade para o diálogo, despertada e desenvolvida durante os encontros e que tem como objetivo o aprimoramento da escrita. Portanto, um terceiro fator de relevância na comunicação dos materiais é a sua dimensão formativa em direção ao trabalho em colaboração permanente entre os criadores.

Conclusão
Para concluir, nossa opção pelo abstracionismo parece ter encaminhado os textos, de modo mais assertivo, para fora dos limites do drama. Na medida em que se trata, em primeira instância, do vínculo entre a composição plástica não figurativa e a escrita, os materiais textuais gerados trouxeram em seu bojo uma configuração que fugiu, em grande parte, ao padrão dramático.


Ateliê de Dramaturgia
CAC Walmor Chagas - São José dos Campos












A experiência com os princípios de criação pictórica puderam ser usados em favor da fragmentação, do questionamento de um sentido único e determinado, da colagem e da montagem em lugar de uma linha única de ação, como também da imissão de gêneros discursivos, da indeterminação dos agentes, do desprendimento em relação à verossimilhança e aos arranjos espaciotemporais, e assim por diante. Nessa mesma perspectiva, acredito que o padrão heterogêneo dos elementos levantados na apreciação, conjugando sensações, emoções, memória, articulações lógicas e elocuções de origens variadas podem ter predisposto a uma escrita igualmente desvinculada, por exemplo, de relações causais.

A ambição original de um projeto de democratização da escrita, baseado na conjunção com as artes visuais e com a cena, que se mostrasse uma opção aos moldes formais de ensino-aprendizagem de dramaturgia mostrou-se possível, bem como o diálogo com os novos processos de criação do espetáculo e com o teatro contemporâneo.


Referências bibliográficas

DANAN, Joseph. Qu'est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. (Aprendre, 28)

NICOLETE, Adélia.  Ateliês de dramaturgia: práticas de escrita a partir da integração artes visuais-texto-cena. São Paulo, 2013. Tese (Doutorado)– Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

______. Da cena ao texto: dramaturgia em processo colaborativo. São Paulo, 2005. Dissertação (Mestrado) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.

______. Fazer para aprender: a prática dos ateliês de escrita dramática em língua francesa.  ANAIS do VI Congresso da ABRACE, 2010.

SARRAZAC, Jean-Pierre. A oficina de escrita dramática. Tradução de C. dos S. Rocha.  Educação e realidade, Rio Grande do Sul, v. 30, n. 2, p. 203-215, jul-dez 2005.

______. (Org.) Léxico do drama moderno e contemporâneo. Tradução de André Telles.  São Paulo : Cosac e Naify, 2012.


Adélia Nicolete



Comunicação apresentada no I Colóquio Internacional de Dramaturgia Letra e Ato
UNICAMP - 2016