O Seminário Brasileiro de Escrita
Dramática – Reflexão e Prática é um encontro anual idealizado e realizado pelo
professor Paulo Ricardo Berton na Universidade Federal de Santa Catarina. A curadoria é dividida com os professores Camila
Bauer (UFRGS) e Manoel Candeias
(Faculdade Célia Helena) e a infraestrutura conta com o trabalho de estagiários
e bolsistas. Durante cinco dias as mesas temáticas de reflexão e debate, as comunicações
de pesquisa, as leituras dramáticas e oficinas, os lançamentos e vendas de livros
visam a colocar em foco a escrita dramática nos diversos veículos.
Quando recebi o convite, em maio desse ano, o
tema proposto para a mesa a ser dividida com o diretor e dramaturgo Diogo
Liberano eram os coletivos de dramaturgia. Comecei a planejar minha fala a
partir de um apanhado histórico e da experiência pessoal para, em seguida,
fechar com os coletivos gerados em cursos e oficinas e o quanto isso representa
para a nossa área de atuação. Passados alguns meses, porém, o contexto
brasileiro (e mundial), que já não era dos melhores, tornou-se tão problemático
e com perspectivas tão alarmantes que o próprio título da mesa foi alterado e
nossa reflexão ganhou diferentes contornos: Manual de Sobrevivência para
Dramaturgos Otimistas: Pequenos Coletivos.
Logo pensei em Ítalo Calvino e suas propostas
para a Literatura no espetaculoso século XXI *. Inspirada nele
(e sabendo-me incapaz de conseguir sequer
uma aproximação), alinhavei uma rapsódia com as minhas "propostas" para o Manual e convidei alguns autores/cúmplices para que, juntos, formássemos um pequeno coletivo em torno do tema.
Ítalo Calvino - para todos os tipos de Manuais (Foto: internet) |
Como o texto ficaria muito grande, cada uma das ideias - Paixão, Aliciamento, Socialização, Diversificação, Formação e Resiliência - será apresentada em postagem própria.
Agradeço desde já eventuais
leituras e uma boa dose de indulgência.
***
1. Paixão
Penso que o primeiro elemento a constar de um Manual
de Sobrevivência, não só do Dramaturgo como também de toda e qualquer
categoria, seja a Paixão. Exatamente.
Não o Amor. A Paixão, em seus mais
variados aspectos, o de sofrimento intenso entre eles.
*
«li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a paixão
e eu me perdesse nela
a paixão grega"
(Herberto Helder - 1930-2015)
Herberto Helder - paixão recente (Foto: internet) |
*
Qual é a nossa paixão? Eis a pergunta
fulcral. Inspirados pelo poeta português Herberto Helder, busquemos a resposta.
O que nos mantém vivos, fazendo teatro? Mesmo
quando nos deixa cansados, nos faz sofrer, nos dá prejuízo financeiro. O convívio com os
pares, loucos e apaixonados como nós, capazes de refazer um trecho ou um texto
mil vezes - obcecados por uma vírgula não percebida, um “caco” não autorizado? Ou o convívio com o grupo e suas dinâmicas especializadas em tirar-nos de nós
mesmos? O espírito gregário – é ele que nos move?
Ou será o jogo da linguagem e seus desafios
permanentes? O que/como (não) expressar? Como/onde (não) tocar (n)o Outro? A ideia de
impossível tradução, a palavra inexistente, os mergulhos abissais no dicionário? A rima, o ritmo, o rito diário diante da tela/página em branco - é essa a nossa tara?
O que nos mobiliza, nos tira do eixo? Qual a
nossa cólera - a que transparece nos olhos? O que ansiamos ver revelado? O que em
nós mesmos e lá fora anseia pelo desbordo?
É a resposta a isso o que dá sentido à nossa arte. O que nos
define perante nós mesmos e perante o coletivo de que participamos, seja ele de
dramaturgos ou de criadores da cena. Perante o público. Porque a paixão vetoriza, nutre e contagia.
Portanto, quem sabe no nosso Manual não caiba uma norma
de aliciamento/contaminação - nosso próximo item? Trazer mais e mais gente para o nosso lado da
trincheira e assegurar que o teatro continue a existir e justifique, inclusive,
a função do dramaturgo! Pois só quem faz teatro sabe o quanto ele é vital. Que
o público, em algum momento, seja seduzido para a cena/vida, convencido de
que talento e inspiração são importantes (ah! os mitos!), mas nada significam se não houver Paixão.
Adélia Nicolete
* Trata-se do livro "Seis propostas para o próximo milênio" (Companhia das Letras). Calvino concluiu, na verdade, cinco conferências a serem proferidas na Universidade de Harvard. Em cada uma delas, abordou uma virtude que, segundo ele, só "a Literatura com seus meios específicos pode dar": Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade. A sexta, Consistência, foi apenas planejada, pois o autor veio a falecer.
Adélia que apaixonante sua postagem.
ResponderExcluirGratidão por compartilhar por aqui.
Obrigada pelo carinho constante, Bruno. Que bom que você curtiu! Um beijo!
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