Para a
maioria de nós, ainda custará um bocado até que esses últimos tempos sejam devidamente assimilados e compreendidos. Cabe à Arte, antes mesmo de possíveis análises históricas
e sociológicas, fornecer instrumentos para que essa compreensão se dê de modo
profundo.
Ao retomar
o mito de Medeia e trazê-lo novamente à cena, Grace Passô o faz ainda atolada nos
acontecimentos recentes, daí a perplexidade sentida em cada ação – e o
enunciado aqui, como em outros textos da autora é pura ação –, em cada
movimento. Esses, por sua vez, lançam sobre nós leitores/espectadores uma série
de instantâneos com que podemos, cada um a seu modo e com suas referências, compor
um quadro particular do nosso tempo.
Grace,
ao longo de sua trajetória, reveza-se como atriz, diretora e dramaturga, com qualidade
e apuro cada vez maiores. Foi uma honra para mim prefaciar seu texto mais
recente, levado à cena sob direção de Inez Vianna e com um elenco encabeçado
por Débora Lamm. *
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Débora Lamm protagoniza "Mata teu pai" (Foto: Elisa Mendes) |
PREFÁCIO
MEDEIA
MMXVI
Houve um tempo em que as histórias eram transmitidas
oralmente, à volta do fogo. Ombro a ombro, olhos nos olhos, vozes e ouvidos em
sintonia - modos de explicar e de compreender a existência das concretudes e de
outros fenômenos, do que se passava dentro e fora de si. Em momentos
determinados, o que era mito ganhava presença e força no rito, vivenciado coletivamente
com celebrações, sacrifícios e festa.
Fixadas na literatura, no teatro, nas artes plásticas,
aquelas narrativas e trajetórias míticas conquistaram as prateleiras e as telas
de cinema. De certa forma domesticadas, perderam em maleabilidade o que
ganharam em portabilidade e alcance. Suas funções, porém, permanecem e uma das
principais é atuar como referência, especialmente em situações de mudança ou de
crise.
O modo com que deusas e deuses, heroínas e heróis enfrentam
os desafios, desproporcionais à medida humana, presta-se a inspirar o nosso
próprio enfrentamento. A partir de seus exemplos ancestrais, podemos
identificar situações e comportamentos que são arquetípicos, ou seja, modelares
da experiência humana tais como a paixão, a lealdade, o desejo de poder, a
traição e a vingança, entre outros. E ao identificar, adquirimos maior
capacidade de compreender e de agir, porque nos posicionamos na esteira do
processo e não apartados dele. É como se nada do que é humano pudesse escapar
do farol ou da mira do mito.
Assim, Mata Teu Pai,
a peça de Grace Passô ora publicada, pode ser vista como resultante da busca
empreendida pela autora por compreender, ao menos em parte, o contexto em que
vivemos à luz do mito de Medeia. Não a protagonista “civilizada” e loquaz dos
trágicos ou dos modernos, mas uma anterior, a Medeia Grande-Mãe ctônica,
febril, senhora da vida e da morte; meio-irmã de Gaia, da nórdica deusa Freia,
de Lilith, a lua escura. Fêmea, fértil, generosa, igualmente impiedosa e
sombria, porém. É essa entidade primitiva que Grace conjura para nos auxiliar
no enfrentamento do presente.
O conhecimento científico e a racionalidade fracassaram –
grassam o machismo e a violência, a intolerância mata um pouco mais a cada dia.
Guerras de conquista e alargamento de fronteiras desterram, a maximização dos
lucros maximiza a miséria, inunda cidades com água e lama. E o poder
constituído pelo voto arroga-se todos os direitos, tornando impunes a traição e
a deslealdade, (in)justificadas por uma ética de ocasião. Em suma, o
patriarcado agoniza, mas ainda assim prevalece. A quem recorrer se não a
Medeia, vingadora, indomável?
Trazida de outros tempos à cena, sua energia é diversa, não
se encaixa no discurso lógico, masculino, nem nos limites da quarta parede. Sua
fala é lava, jorro incandescente e não cabe a ela adequar-se às nossas
convenções, ao contrário: necessário é o nosso esforço em abandoná-las e a tudo
o mais que represente a velha ordem falida. Precisamos ter coragem. A Deusa
atendeu ao chamado e se apresenta em sua face mais terrível. Não poderia ser de
outra forma se queremos que uma nova ordem se estabeleça.
Seu poder se faz sentir também na dramaturgia. Dessa vez, a
poesia de Grace Passô faz voo livre, ora nas alturas da razão, ora nas
profundezas do inconsciente e da libido. Peça-partitura a romper com o
patriarcado da forma dramática convencional, Mata Teu Pai é constituída de onze movimentos livres, cada um com
atmosfera própria, staccatos,
ritornelos e didascálias que, em sua maioria, trazem indicações sonoras.
Tal é a autonomia poética do texto, que ele sugere uma
intensa parceria criativa de intérpretes, direção e público para que se efetive
como dramaturgia, para que o mito seja revivificado. Não mais à volta do fogo,
mas com o incêndio à nossa volta, no rito coletivo do teatro.
Adélia Nicolete
Janeiro de 2017
* PASSÔ, Grace. Mata teu pai. Rio de Janeiro: Cobogó, 2017.