quarta-feira, 30 de julho de 2014

"O que é a dramaturgia" - fragmentos de Joseph Danan


     Nosso mestrado, sob orientação da Profª Sílvia Fernandes, abordou a dramaturgia em processo colaborativo. Consideramos que o dramaturgo que atua junto da cena, compartilhando com os demais artistas a criação do texto (mesmo quando ele não é verbalizado) seria herdeiro tanto das práticas da criação coletiva quanto das funções do dramaturgista – responsável por pesquisas, proposição de reflexões, adaptação ou transcriação de textos já existentes, acompanhamento de ensaios, escrita de diversas versões até a definição do texto “final”.

      No projeto de doutorado, sob orientação da Profª Maria Lúcia Pupo, nos deparamos novamente com o tema da dramaturgia contemporânea. E ao tomarmos contato com o livro Qu'est-ce que la dramaturgie?, verificamos que, segundo seu autor, Joseph Danan, o espectro da dramaturgia enquanto função se ampliou, abarcando, inclusive, o trabalho de dramaturgismo.

      Objetivamos, nos limites deste artigo, apresentar algumas das reflexões de Danan, com vistas a nutrir a discussão do tema no contexto brasileiro: a dramaturgia como escrita e como passagem para a cena.

Dualidade fecunda e significativa
     
      Depois de fazer um levantamento das diversas definições de dramaturgia ao longo do tempo, Danan propõe dois sentidos básicos para o termo, que se ramificam e interagem permanentemente. O primeiro deles se refere à função do autor dramático, dramatiker, em alemão. É a noção mais convencional e, sob alguns aspectos, mais limitada do termo.

      O segundo sentido se refere à função do dramaturgista, dramaturg, em alemão. Aquele que não é o autor do texto dramático, mas que desempenha uma série de atividades que efetivamente envolvem a dramaturgia.

      Danan avisa que não são as máscaras (personas) do autor dramático e do dramaturgista que interessam, “mas a função nomeada dramaturgia que elas encarnam, assim como a carga teórica e prática desta noção” (DANAN, 2010, p. 6). Temos, portanto, uma primeira reflexão a respeito de nosso tema: a noção de dramaturgia que se amplia da criação individual de uma peça de teatro (sentido 1), com toda a pesquisa que tal atividade implica, para o trabalho junto da cena (sentido 2). Para Danan o dramaturgista desempenha a função dramaturgia, tanto quanto o autor dramático e, como veremos adiante, toda a equipe.

      No Brasil, porém, embora recorramos esporadicamente ao trabalho do dramaturgista desde os anos 1980,  sua função, por aqui, ainda não tem o status da do dramaturgo. É o que podemos notar no depoimento de Cacá Brandão, dramaturgista do Grupo Galpão, de Belo Horizonte:

“Se na Alemanha, onde sua figura surgiu, ele tem um dos mais altos cachês e, junto com o diretor, é quem começa e vai definindo a peça, aqui ele é pouco veiculado na mídia e aparece mais como figura acessória aos olhos do próprio meio teatral e, por consequência, do público. Costumam apresentá-lo apenas como criador de alguns textos. Só o grupo sente, mais do que sabe, o que ele significa.” (BRANDÃO, 1993, p. 22)

      Notamos que, na maioria das montagens brasileiras, a equipe divide as múltiplas tarefas do dramaturgista: pesquisa de campo e teórica; seminários temáticos; escolha e estudo do texto a ser representando; possíveis transcriações e junções de textos teatrais ou de gêneros diversos, e muito mais. Esse expediente se dá seja  seja por falta de verba para a adoção de mais um colaborador, seja por falta de alguém capacitado para tal função, ou por simples ignorância a respeito do dramaturgismo. Nesses casos, para Danan, o grupo todo está encarregado da dramaturgia.


G. E. Lessing e Bernard Dort
     
      Ao ampliar a noção de dramaturgia abarcando também o dramaturgismo, Danan toma como referências, entre outros, G.E. Lessing (1729-1781), em sua Dramaturgia de Hamburgo, e Bernard Dort (1929-1994), principalmente no que se refere à emancipação da representação e ao estado de espírito dramatúrgico.

      Pouco conhecida entre nós, a Dramaturgia de Hamburgo é uma compilação de críticas e reflexões escritas por Lessing no dia-a-dia de seu trabalho no Teatro Nacional de Hamburgo, entre 1767 e 1768. São registros de processos, abarcando a escolha dos textos e seu estudo, a interpretação dos atores, o trabalho da direção, a crítica das montagens. A escolha de Dramaturgia para o título da obra é sintomático, pois além de permitir novos sentidos para o termo, trazia uma intenção política: fundamentar um teatro verdadeiramente alemão, que pudesse se libertar das normas do classicismo - mais aristotélico que Aristóteles, segundo o crítico. Inferimos daí que é também dramaturgia fundamentar um pensamento teatral, um modo de abordar os textos - dramáticos ou teóricos - que seja próprio de determinado contexto.

      Para Danan, dramaturgia é o nome da parte imaterial de um espetáculo, é o pensamento que atravessa a encenação, que a trabalha e se constitui através dela, no cadinho de sua materialidade (DANAN, 2010). É pertinente pensar, então, que, sob certo aspecto, pode-se fazer dramaturgia nacional a partir de um texto estrangeiro. O exemplo vem do próprio TNH. Embora não tenha havido tempo para a criação de peças nacionais no curto período em que atuou, Lessing colaborou colocando-se não como um autor dramático, mas um terceiro homem, intercessor entre o autor e o ator. Promoveu um estudo livre de amarras normativas – leia-se francesas, já que, para ele, as regras não valem por si mesmas, e nem se deve respeitar cegamente as prescrições (rubricas) do autor. As regras valem por sua “dimensão estética e dramatúrgica e, finalmente, sua eficiência”. Ao abordar a eficiência de um texto, o crítico incluía a encenação e o espectador em suas considerações. Incluía a recepção, e “o vai-vem, o entrançamento que se opera sem cessar entre o texto e a representação”, entre a obra e o público daquele tempo e daquele lugar. (Idem, p. 14).

      Hoje, boa parte do trabalho que Lessing desempenhava como dramaturgista é cada vez mais assumido pelo dramaturgo e pela equipe. Notamos que a preocupação com a eficiência de um texto (dramático ou cênico) está presente desde o início dos trabalhos. Na medida em que cenas são criadas, elas são exibidas – primeiro para o próprio grupo, depois em ensaios abertos – avaliadas, reformuladas, até atingirem uma forma que satisfaça, ainda que provisoriamente, os criadores.

      À primeira vista, pode parecer que as notas publicadas por Lessing sobre os espetáculos atinham-se a uma análise da peça como texto escrito. O conceito de encenação ainda não existia, havia, sim, “um efeito de transparência que fazia com que se visse na cena o que se via na peça escrita”. Às vezes aflorava nas análises “a crítica moderna da representação; não ainda escolhas de encenação, mas frequentemente, modos de atuação, de interpretação dos atores, onde poderia ser entrevista uma encenação ainda em gestação” (Idem).  Para Danan, a Dramaturgia de Hamburgo prenuncia o nascimento da encenação, seu desenvolvimento ao longo do século 20, e as fricções entre texto e cena que obrigarão a repensar a própria noção de dramaturgia – temas caros a Bernard Dort.

       A dramaturgia, concebida como uma atividade que se distingue ao mesmo tempo da escrita e da encenação é, para Dort, um estado de espírito, uma prática transversal, possível apenas com a emancipação da representação. Para ele,

“O advento do encenador e a compreensão da representação como lugar próprio da significação (não como tradução ou consecução de um texto) constituíram apenas uma primeira fase [de transformações]. Constata-se hoje uma emancipação progressiva dos elementos da representação e podemos verificar uma mudança em sua estrutura: a renúncia a uma unidade orgânica  prescrita a priori e o reconhecimento do fato teatral como polifonia significante, aberta ao espectador.” (DORT, 1988, p. 178)

            Com isso, a representação não postula mais uma fusão ou uma união das artes -  como pretendiam Richard Wagner (1813-1883) ou E. Gordon Craig (1872-1966) - e o texto não é mais o centro de gravidade da criação teatral. Ocorre, portanto, uma relativa independência dos elementos, a partir de sua equivalência: não só o texto é emissor de sentido, mas também a luz, o espaço, o cenário, os objetos, o figurino, a interpretação e tudo o mais. Há um discurso que percorre cada um deles, paralelamente, o que produz, segundo Dort, um combate pelo sentido, combate em que o espectador é, no final das contas, juiz:

“Portanto, a questão do texto e da cena se encontra deslocado. Não se trata mais de saber o que prevalece, o texto ou a cena. Sua análise, assim como as relações entre os componentes da cena, não precisa ser pensado em termos de união ou subordinação. É uma competição, uma contradição que se instaura diante de nós, espectadores. A teatralidade, então, não é mais tão somente a “espessura de signos” de que falava Roland Barthes. Ela é também o deslocamento desses signos, sua conjunção impossível, seu confronto sob o olhar do espectador desta representação [que é] emancipada [do texto dramático]. (Idem, p. 183)

      Ao retomarmos a proposta de Danan em relação aos dois sentidos básicos da dramaturgia, verificamos que o sentido 1 estaria do lado do texto, o segundo, mais amplo, do lado da passagem do texto à cena. No teatro contemporâneo isso não implica mais numa ordem cronológica, pois a cena pode vir antes do texto dramático ou de um roteiro de ações. Não implica também numa função específica do dramaturgo ou do diretor, já que, segundo Dort, “o trabalho dramatúrgico sobre um texto não é um trabalho para especialista, e sim para todos os responsáveis pelo espetáculo, donde é necessário um 'estado de espírito dramatúrgico”, “uma reflexão sobre as virtualidades” (DORT, 1986, p. 8).

      O estado de espírito dramatúrgico vem substituir o “estado de espírito semiológico”. Este, em vez de estruturar a representação como o confronto dos signos proposto por Dort, procura constitui-la em um sistema de signos milimetricamente codificados, que erguem grades de leitura a fim de controlar a construção do sentido por parte do espectador. (DANAN, 2010, p. 35). A “reflexão sobre as virtualidades”, ao contrário, permite que os signos se multipliquem na medida em que cada criador contribui de maneira singular para a narrativa geral do espetáculo – imbuído que está do estado de espírito dramatúrgico.

            O trabalho de dramaturgia começa antes dos ensaios: na pesquisa e nas proposições iniciais. Em seguida, pode se dar uma dramaturgia de palco, em que o dramaturgo ou dramaturgista escreve a partir dos estímulos propostos pelos demais criadores. Trata-se de “experimentações cênicas, que o olho do dramaturgo (que difere, nessa atividade, do olho do encenador tão somente porque não dirige o trabalho e permanece, então, mais exterior que o 'olhar exterior' daquele) observa, analisa, seleciona, adota, recusa” e retribui em forma de palavras - faladas e escritas (Idem, p.36). No caso de um texto já escrito, o trabalho da equipe consiste em analisar, comparar versões anteriores do texto e de encenações, pesquisar autor e época, a recepção quando da primeira exibição/edição, por exemplo.

            O estado de espírito dramatúrgico assumido por todos nos ensaios foi integrado e assimilado pelo encenador a tal ponto que ele pode se abandonar à dramaturgia em ação que se chama encenação.
           

Referências bibliográficas
BESSON, J-L, KUNTZ, H.  La Dramaturgie de Hambourg - Introduction. In: Théâtre/Public, Gennevilliers, jan-mar 2009, pp.4-8.
BRANDÃO, C. A. Leite. Romeu e Romeu e Julieta : o trabalho do dramaturg ao sabor do barroco mineiro. Máscara. Ribeirão Preto. v.2, n.2, p. 20-22, jun. 1993
DANAN, Joseph. Lectures du texte de théâtre. In: ANRAT.  Le théâtre et l'école : histoire et perspectives d'une relation passionnée. Arles : Actes-Sud, 2002. pp. 154-164
______. Qu'est-ce que la dramaturgie? Arles : Actes Sud, 2010 (Apprendre, 28)
DORT, Bernard.  La représentation emancipée. In: DORT, Bernard. La représentation emancipée – essai.  Arles : Actes Sud, 1988. p. 171-184. (Le temps du théâtre)
______. L’état d’esprit dramaturgique. Théâtre/Public, jan-fev 1986, nº 67, p. 8-12.
NICOLETE, Adélia. Ateliês de dramaturgia: práticas de escrita a partir da integração artes visuais-texto-cena. 2013. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. 
______. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. 2005. Dissertação (Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo. 





Artigo publicado originalmente nos Anais da VI Reunião Científica da ABRACE - 2011

Para visualização em pdf, acessar:
http://www.portalabrace.org/vireuniao/pedagogia/1.%20Adelia_Nicolete.pdf

sábado, 26 de julho de 2014

Criação coletiva e processo colaborativo: algumas semelhanças e diferenças no trabalho dramatúrgico


“Quando será que essa dramaturgia vai ficar
pronta? Quando será que vamos parar de reescrever
esta cena? Algum dia esse roteiro vai
ficar bom? O prazer de trabalhar com dramaturgos
antigabinetes, antitorres-de-marfim.
Generosos e arrojados. Sem preguiça de
ouvir as necessidades que nascem na sala de
ensaio, sem pudor de jogar seu texto fora se a
cena assim o pedir. Dramaturgos que abdicam
da eternidade em prol de uma escrita tão
fugaz e temporária como a dos atores e diretores.”

Antônio Araújo


Até os princípios do século XX, era impensada uma colocação como essa, feita pelo diretor do Teatro da Vertigem em um texto em que ele pretendeu reportar, à maneira da escrita surrealista, o denominado processo colaborativo de trabalho nos espetáculos da Trilogia Bíblica do grupo.

Durante muito tempo o texto foi considerado o elemento mais importante do teatro e o autor teve o domínio de conteúdo, forma e sentido. Dessa maneira, como encenar uma peça que ainda não fora escrita por completo? Para quê dar ouvidos a atores, se eram encarados como simples emissores do texto? Dar voz ao diretor, se sua missão era cumprir ‘fielmente’ as prescrições de um autor que, na quase totalidade dos casos, escrevia a peça concentrada e solitariamente, acalentando o sonho nada secreto de ser eternizado pela literatura?

Têm pouco mais de um século os primeiros questionamentos da autoridade do texto e do autor. Os diretores foram assumindo cada vez mais sua posição como criadores do espetáculo, chegando mesmo a ‘depor’ o texto em nome da encenação, e o ator também pôde conquistar uma outra posição que não a de mero executante de idéias alheias – tanto que, por volta dos anos 1960, chegou-se a afirmar o corpo contra o texto. Numa época em que ao ator começou a caber grande parcela da criação, a equipe como um todo ganhou destaque e passou a se encarregar da elaboração do espetáculo, desde a idéia original até a finalização. Havia, segundo Pavis, um “clima sociológico” favorecendo que o autor, antes individual, passasse a corresponder ao coletivo do grupo2 – ganhando destaque a chamada criação coletiva, vista por muitos como a precursora do processo colaborativo. Sílvia Fernandes afirma que há semelhanças entre os dois procedimentos, mas que eles não chegam a se confundir (Fernandes, 2002, p. 36). O fato é que em ambos o dramaturgo desceu, finalmente, de sua torre de marfim e foi para  a sala de ensaio.


Para ler o artigo em pdf, na íntegra (8 páginas), basta acessar o link abaixo:
http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57109


artigo publicado na revista sala preta  v. 2, de 2002

terça-feira, 22 de julho de 2014

Teatro da Conspiração às portas do 30º aniversário

                                       


Cena do espetáculo "Dassanta" - 2010
Dramaturgia e Direção de Solange Dias
Foto: Felipe Veríssimo


Nossas referências sobre o teatro no ABC muito se devem às pesquisas e publicações de Paschoalino Assumpção e José Armando Pereira da Silva. Foi por meio deles que pudemos entrar em contato com as origens operárias do teatro feito em nossa região, bem como seu desenvolvimento até meados dos anos 1960. O que ocorreu depois disso, e foram muitas e variadas manifestações, ainda carece de registro.

Para ficarmos circunscritos a Santo André, podemos citar os festivais de teatro amador que, retomados nos anos 1980 e encerrados na década seguinte, atendiam a demanda dos grupos que, pouco a pouco, aumentavam em número e, já sob influência do teatro feito em São Paulo, propunham inovações temáticas e formais. Os centros de cultura nos bairros, o trabalho de Augusto Boal com os artistas da cidade, as EMIAS (escolas municipais de iniciação artística), a criação da Escola Livre de Teatro são também algumas das experiências à espera de registro adequado.

Dos grupos amadores surgidos nos anos 1980 dois, nascidos em espaços escolares, geraram o Teatro da Conspiração. Um deles foi o TeHOR Movimento Artístico, formado em 1985 por alunos da FATEA (Faculdades Integradas Teresa D'Ávila, hoje FAINC), o outro foi o Içué de Talhe, formado por alunos do Colégio Singular. Anos depois, alguns componentes dos dois grupos se uniram e formaram um terceiro, o Póstumo e Diluto, que atuou até meados dos anos 1990. Com a dissolução do grupo, uma parte dos artistas formou o Teatro do Abaporu, que passou a atuar tanto na cena quanto em trabalhos pedagógicos junto às comunidades andreenses.

O sonho de ter seu trabalho reconhecido por um maior número de espectadores levou muitos artistas e grupos a migrarem para São Paulo, como, aliás, o fizeram artistas de gerações passadas. Não foi diferente com o Teatro do Abaporu, que desenvolveu espetáculos na capital, mas acabou retornando a Santo André nos anos 1990. Nesse retorno, remanescentes do grupo se uniram a alunos da FATEA, das oficinas culturais e da ELT para a montagem de Partida, de Luís Carlos Leite, dando origem ao Teatro da Conspiração, no ano 2000.

Na atuação do grupo podem ser identificados elementos já presentes nos trabalhos dos anos 1980: dramaturgia autoral e pesquisa formal, agora aliadas à temática  histórica, em Geração 80 e Tito, e social, em Partida e Cantos periféricos. Dois  desses textos já foram publicados. Outros dois foram tema de mestrado na USP e na UNICAMP.

A partir de 2004, o Teatro da Conspiração retoma seu caminho pedagógico e inicia uma segunda vertente de atuação, o Teatro da Transpiração, projeto desenvolvido no Parque Escola de Santo André. O local que antes era dedicado tão somente às atividades botânicas passa a ser frequentado aos domingos por jovens atores que, aos poucos, trazem para este lado da cidade um número cada vez maior de espectadores e inauguram um novo espaço teatral na comunidade.

O grupo chega a 2010 com novas montagens, núcleos independentes e o mesmo espírito que o acompanha desde suas origens, 25 anos atrás: o espírito amador e artesanal. Amador porque realizado sem patrocínio, sem fomento, quase sempre de forma cooperativada. Artesanal porque feito com paixão, sem os ditames do mercado e apesar do pessimismo que volta e meia decreta o fim ou a inviabilidade desse tipo de trabalho.


Um teatro de qualidade que está indissoluvelmente ligado à evolução das artes cênicas na região e ao qual muito me orgulho de também estar indissoluvelmente ligada.        Viva!   



2014 - 10 anos do Teatro da Transpiração
29 anos do Teatro da Conspiração


(Texto publicado originalmente pelo grupo em 2010)

http://teatrodaconspiracao.blogspot.com.br/

maiores informações sobre artistas e grupos  do período podem ser encontradas em
http://aoentretempos.blogspot.com.br/

quinta-feira, 17 de julho de 2014

"Querô, uma reportagem maldita", de Plínio Marcos - romance, peça teatral e espetáculo

Plínio Marcos na redação do jornal Última Hora - 1975
           

            Em diversos depoimentos e entrevistas dados por Plínio Marcos (1935-1999) pode-se encontrar a expressão “juro por essa luz que me ilumina”, não por acaso repetida diversas vezes pelo personagem Querô, durante o relato de vida que faz a um jornalista.

            Jurar pela luz que nos ilumina é jurar pela verdade “e dar fé”. É empenhar a palavra. Pode-se dizer que foi isso que fez Plínio Marcos por meio de sua obra: empenhou a palavra ao colocá-la a serviço daqueles que, na nossa sociedade, não têm voz. Fez isso nos anos 1970, principalmente, mas ainda hoje seus textos continuam iluminando verdades que teimamos não existirem. Como afirmou o autor em 1980, vinte e um anos depois de ter escrito a peça Barrela, ao verificar que o texto continuava valendo como retrato da realidade nos presídios: “é tudo culpa do país, que não evoluiu socialmente. E, se continuarmos desse jeito, essa peça vira um clássico.” [1]

            Querô, uma reportagem maldita – o romance – foi lançado em 1976 e, da mesma forma que Barrela, parece ter sido escrito recentemente, com base em alguma notícia fresca de jornal. A adaptação para teatro foi feita pelo próprio autor em 1979, mas só veio a ser encenada profissionalmente anos mais tarde pelo grupo TAPA, em São Paulo e, mais recentemente, pelo Grupo Folias D’Arte, na mesma cidade. O cinema também realizou uma versão da história, sob a direção de Carlos Cortez .

            O objetivo principal desse estudo é fazer uma análise comparativa entre o romance, a adaptação para teatro e a encenação feita pelo Grupo Folias. Boa leitura!



           Acessar o texto completo em:

http://pt.slideshare.net/adelianicolete/quer-romance-pea-espetculo-pdf-1








[1] www. pliniomarcos.com – site oficial do autor

sábado, 12 de julho de 2014

Gertrude Stein (1874-1946)


Gertrude Stein em seu escritório - 1920
Foto: Man Ray


         É  a resistência de Gertrude Stein ao diálogo dramático que faz de suas peças textos precursores das escritas contemporâneas. Desde sua primeira obra para teatro, O que aconteceu, uma peça em cinco atos, Stein abandona as marcas do diálogo (travessões, rubricas distinguindo personagens, separação entre as réplicas), indicando, porém, no subtítulo irônico, a filiação do texto ao gênero dramático. Nas setenta peças que escreveu entre 1913 e 1946, ela usa esse tipo de paradoxo na denominação de seus textos, frustrando as expectativas do leitor, desconstruindo ou recusando cada um dos elementos estruturais do teatro: progressão de uma ação ficcional, separação em atos ou em cenas, existência de personagens definidos. Seu primeiro conjunto de peças Geography and Plays, publicado em 1922, mistura textos descritivos (retratos de pessoas e de povos) com textos para teatro. Mais tarde, em Operas and Plays (1932), o modelo geográfico surge explícito: Stein inventa a “peça-paisagem”. ELast Operas and Playscompêndio publicado postumamente, em 1949, voltando-se por vezes à ficção, ela aprofunda seu trabalho de repetição-variação.

         A característica dominante da peça-paisagem é seu rompimento e sua progressão por “reptation aléatoire”[1]. Grande admiradora de Cézanne, Gertrude Stein desejaria reproduzir na literatura a revolução que aquela pintura havia operado na tela. Em oposição à composição pictórica tradicional, em que as diversas partes convergem para uma ideia ou um ponto central que atrai o olhar, Cézanne  concebeu e realizou composições não hierarquizadas, em que todos os elementos são colocados no mesmo plano. Os diálogos “quebrados” de Stein parecem ser a transposição escrita desse princípio. Eles parecem também influenciados por um outro movimento pictórico, do qual Stein foi uma divulgadora fervorosa: o cubismo. A composição repousa na relação dos elementos entre si, princípio que substitui a troca dialogal:
        
“A paisagem tem sua própria constituição e como afinal de contas uma peça deve também ter sua constituição e relacionar uma coisa a outra e como a história não é o importante visto que nós contamos todas as histórias então a paisagem que não se move mas é sempre relacionada, as árvores às  colinas, as colinas aos campos as árvores umas com as outras não importa qual porção delas com não importa qual céu e também cada detalhe a cada outro, a história não tem importância o quanto amamos contar ou ouvir uma história mas a relação está lá não importa como.”[2]
        
Na peça-paisagem, as palavras se encadeiam por associação de ideias, jogos de sonoridade, ou reduplicação de estruturas sintáticas, como na imagem do trecho a seguir, de A circular play:
        
“The work can you work
And meat
can you meet
And flour
can you flower.”[3]

         As palavras são assim justapostas segundo um dispositivo que evoca a colagem e a escritura poética. Stein cala o diálogo, não atribuindo sequer palavras à  voz/ às vozes. “Podemos até mesmo ter preconceito contra as vozes”, ela declara no mesmo texto.

         O texto steiniano repousa não somente na justaposição de seus elementos, mas também sobre sua 'insistência'. “É expressão humana querer dizer a mesma coisa e insistentemente e nós insistimos com diferentes enfases.”[4] Quando há diálogo, a maneira com que as palavras vão e voltam, e variam ao infinito.

“A questão da repetição é muito importante. É importante porque a repetição é uma coisa que não existe. (…) Se você ouvir atentamente, você diz alguma coisa, a outra pessoa diz alguma coisa, mas a cada vez ela muda um pouco, até que finalmente você a convence, ou não a convence.”[5]

         O mais célebre exemplo de “insistência” é sem dúvida a divisa de Gertude Stein: “a rose is a rose is a rose”.[6] A tautologia engendra paradoxalmente uma abertura do sentido, localizada não somente nas microvariações que o afetam, mas também nos diferentes contextos nos quais a fórmula é repetida. Em Captain Walter Arnold – a play, Gertrude Stein afirmou por outro lado: “Posso explicar como ao repetir duas vezes você muda o significado você na verdade muda o significado. Isto torna a coisa mais interessante.”[7]

         Bem entendido, a aplicação exagerada da repetição pode também provocar um esvaziamento de sentido em proveito do significante e do ritmo do texto. Nas peças de Stein, sua utilização implica em uma progressão textual de tipo lírico, em oposição à evolução da ação dramática. Instilada no diálogo, ela tem a tendência a modificar sua estrutura: a identidade dos locutores é atenuada em proveito de uma certa coralidade, os efeitos de ritmo e de ecolalia substituem a troca de réplicas, não se pode falar propriamente de início, ponto nodal ou encerramento de uma troca dialógica. Assim, em Lista, o ritornelo aparece tanto de uma réplica a outra, quanto no interior de uma mesma réplica:

MARYAS. Maybe I do but I doubt it.
MARTHA. I do but I do doubt it.
MARTHA AND MARYAS. Maybe I do but I doubt it. I do but I do doubt it.[8]

         Por outro lado, muitas vezes a troca é gramatical e sonora mais que semântica. A escritura de Stein é principalmente musical. É por isso que o texto steiniano dificilmente dispensa a leitura em voz alta. Ele evoca os trava-línguas, essas acrobacias verbais que são desafios à articulação, e que se repetem indefinidamente a fim de se apropriar, tropeçando sobre as palavras e tentando múltiplas entonações.

         Desde os anos 1920, Stein radicaliza certos gestos representativos do diálogo contemporâneo. Já podemos falar de um teatro do verbo e da palavra, em que constata-se, com efeito: o desaparecimento do personagem em proveito das entidades vocais ou de ilhotas textuais sem designação de emissor; a primazia da dimensão sonora e rítmica da linguagem; a repetição coral das réplicas, assim como sua ruptura e sua incompletude. Por essas razões, a obra de Stein exige a perseverança tanto do leitor como do espectador. Enquanto o primeiro deve oralizar o texto e orquestrar as vozes na cabeça, o segundo deve aceitar se situar num presente contínuo de um teatro que não é senão linguístico.



CHÉNETIER, Marion, MARTINEZ, Ariane.  Gertrude Stein (1874-1946). In: RYNGAERT, Jean-Pierre. (org) Nouveaux territoires du dialogue.  Arles : Actes Sud-Papiers, 2005.  p. 75-80.


Tradução livre de Adélia Nicolete para uso em sala de aula.


Publicado anteriormente em
http://papelferepedra.blogspot.com.br/
http://www.primeirosinal.com.br/





[1]    Ao contrário da forma dramática, em que as ações progridem por encadeamento de causas e efeitos, por exemplo, na peça-paisagem ela “progride numa fluência aleatória,  por justaposição casual de micro-ações descontínuas” Michel Vinaver (org). Ecritures dramatiques. Essais d'analyse de textes de théâtre, Actes Sud, 1993, p. 905. (N.T.)
[2]    Gertrude Stein, “Théâtre”, in Lectures em Amerique, traduzido [do inglês para o francês] por Claude Grimal, Christian Borgois, 1978, p. 122.
[3]    “A circular play (1920)”, in Las operas and plays. Rinehart, New York [1949], p. 141
[4]    Gertrude Stein, “Portarits et répétition”, in Lectures em Ameriqueop. cit. p. 132
[5]    Gertrude Stein, “Comment l'écrit s'écrit”, ibid., p. 217
[6]    “Objects lie on a table (1922), in Operas and plays, Station Hill Press, Barrytown, 1987, p. 110
[7]    “Captain Walter Arnold (1922)”, in Geography and plays, The University of Winconsin Press, Madison, 1993, p. 260. Trad. para o português de J. C. Guimarães (N.T.)
[8]    “A list (1923)”, in Operas and plays, op. Cit, p. 91-92.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Criação dramatúrgica a partir de jogos tradicionais

Para visualização em pdf, acessar:
http://pt.slideshare.net/adelianicolete/dramaturgia-e-jogo-tradicional


Em cursos superiores de Educação Artística que ainda existem no país, frequentemente nos deparamos com alunos que chegam sem experiência alguma em teatro – seja na prática da cena, seja como espectadores. Quando questionados sobre as expectativas em relação à disciplina Teatro, é comum manifestarem a recusa em “subir ao palco” ou em simplesmente atuar na frente dos colegas. E quando o assunto é escrever, criar textos, o problema se mostra ainda maior. Tentando superar essa dificuldade, há alguns anos venho trabalhando uma forma de despertar na classe o gosto pelas aulas de teatro e a criação de textos. A partir da vivência com os jogos tradicionais, discutidos e reelaborados à luz dos jogos teatrais e da dramaturgia, cenas são desenvolvidas, culminando no registro escrito de um texto nascido de muitos jogadores em campo. É o que relatarei a seguir.

Por mais de uma década trabalhei com iniciação ao teatro no curso de Educação Artística das Faculdades Integradas Coração de Jesus, no ABC paulista. A experiência se dava no primeiro semestre da disciplina Fundamentos da Expressão e Comunicação Artísticas (FECA-Teatro). A cada ano ingressava no curso uma média de 40 alunos. Salvo raras exceções, era grande o número de alunos que se diziam avessos à auto-exposição e, consequentemente, ao teatro. Diziam-se tímidos, afirmavam não “levar jeito para a coisa” e, grande parte das vezes, associavam a arte dramática aos programas de televisão, já que “nunca tinham ido ao teatro”. Dentre aqueles que se mostravam interessados, muitos já haviam feito teatro na escola, mas poucos haviam assistido a uma montagem fora do âmbito escolar. Embora o curso fosse particular, quase a totalidade dos alunos era egressa de escolas públicas e de cursos supletivos, o que pode explicar, em parte, o fato de nunca terem assistido a um espetáculo em teatro.[1]

Após a sondagem inicial, expunha-se o conteúdo e as propostas da disciplina.[2] Naquele momento esclareciam-se equívocos como os que resumem a prática teatral à montagem de espetáculos, ou de exercícios abertos a um público externo, por exemplo. Deixava-se claro que haveria momentos práticos, mas sempre amparados por teoria e reflexão – informação importante, pois muitos alunos vinculavam o teatro somente à prática, ao “talento” e à intuição, desconhecendo a existência de fundamentos teóricos. Na aula seguinte propunha-se uma discussão sobre a linguagem teatral, seus aspectos históricos, suas funções gerais e específicas, suas aplicações e relações com as demais artes e meios expressivos. Oportunidade de se mapear um sem-número de áreas e funções ligadas ao teatro, que não apenas a função do ator.

O terceiro encontro, ainda teórico, girava em torno de um artigo de Ilo Krugli intitulado “Arte-educação: ética e estética”. A discussão do texto visava ao levantamento de questões sobre a atuação do professor de artes, e a importância de proporcionar um espaço anárquico em sala de aula, favorável à criatividade. Como exemplo de espaço anárquico, o autor cita o quintal – local em que a liberdade permite os vôos da imaginação, em que as regras são permanentemente discutíveis. O quintal, por ser o depósito de coisas “inúteis”, seria o ambiente ideal para a transformação e a apropriação de novos sentidos para objetos e papéis sociais. Em suma, a discussão do artigo tinha em vistas também uma auto-reflexão por parte dos alunos que, ao relembrar os quintais de sua infância, poderiam tentar compreender sua atual relação com a arte/criatividade, e sua atual ou futura atuação como professores. Em grupos, os participantes trocavam impressões sobre os espaços anárquicos da infância e relacionavam os jogos e brincadeiras de que se lembravam. A partir da discussão do artigo, minha proposta era que cada aluno fizesse um mergulho em sua infância e registrasse, de forma escrita, sua experiência no que teriam sido seus quintais. No caso de não ter havido um quintal concreto, valeria qualquer espaço anárquico experimentado na infância. Os alunos eram orientados a descrever os espaços, as brincadeiras, as pessoas envolvidas e as sensações vivenciadas. Dado um prazo para a entrega do trabalho, o memorial poderia conter fotos e ser confeccionado da maneira que bem entendessem. Estava dado o pontapé inicial para as aulas práticas de iniciação teatral.

O espaço designado para as aulas era a quadra coberta – mais favorável só um quintal ou a rua. As aulas começavam com um círculo, momento utilizado para a concentração, a recapitulação da aula anterior, os avisos e a explanação sobre as atividades do dia. O primeiro bloco, com quatro encontros, era dedicado à vivência e à reflexão sobre os jogos tradicionais. O roteiro obedecia a seguinte ordem: aquecimento físico e três a quatro jogos tradicionais, que eram escolhidos pelos alunos. Dividia-se a turma em grupos e cada um deles revezava na prática dos jogos. O término das partidas era decidido pela questão tempo. Na última parte da aula voltava-se ao círculo para a avaliação do dia. Eram anotados a descrição de cada jogo, os objetivos pretendidos com eles, as regras – a estrutura, em suma. Anotavam-se também as sensações e as atitudes observadas, as quebras de regra, as questões éticas e tudo o mais que, sem os alunos saberem naquele momento, seria utilizado na elaboração das cenas futuras.

Ao longo dos trabalhos com jogos tradicionais novos comandos eram incorporados à rotina: observação da configuração estética em campo, do interesse a ser suscitado pelos jogadores num público imaginário, da cooperação, e do pedido de “congelamento” da ação por parte da professora, a fim de tomarem consciência de algum ponto notável ou reencaminharem determinadas ações. Esses comandos se mostrariam importantes quando do trabalho posterior com jogos teatrais.
É importante detalhar aqui o processo de análise dos jogos tradicionais, tendo em vista a futura relação com a dramaturgia. Tomemos como exemplo um jogo bastante conhecido: batata-quente. Descritas as regras, variações e estrutura do jogo, o passo seguinte era analisar questões como a) qual é o objetivo? b) o que se opõe a esse objetivo? c) quais as dificuldades enfrentadas? d) quais as habilidades necessárias para atingir o objetivo? e) envolve questões éticas? f) quem vence? g) quais as sensações experimentadas?
Numa etapa mais avançada, os grupos retomavam essa análise e, tendo já vivenciado alguns conceitos de jogos teatrais (improvisações, onde, o que, quem, fisicalização, platéia ativa, prontidão, mostrar e não contar, elaboração de planta baixa, etc), partiam para a elaboração de uma resposta improvisada para a seguinte questão: que situação podemos criar a partir dos elementos levantados no jogo da batata-quente? Uma equipe imaginou uma situação de férias na praia. Cada membro da família se divertia a seu modo e, em dado momento, o bebê começava a chorar. Iniciava-se a transferência do problema de um para o outro, envolvendo questões sobre os papéis sociais, a terceira idade, a condição econômica da família, o sentimento de culpa, a responsabilidade, o medo, os truques para se livrar da incumbência.

Cada grupo escolhia um jogo tradicional para, a partir dele e dos jogos teatrais, imaginar e improvisar situações. As próximas aulas seriam dedicadas à avaliação e reelaboração das cenas, no sentido de aplicar, cada vez mais, elementos do jogo/dramaturgia (objetivos, conflitos internos e externos, sentimentos envolvidos, linha de ação, etc). As equipes eram estimuladas a ampliar e aprofundar os conflitos e abordagens, a fim de que a cena não fosse mera ilustração do jogo, mas oportunidade para uma leitura da realidade que pudesse ser divertida, sem deixar de ser crítica. 

A certa altura, cada grupo exibia seu trabalho para ser avaliado pelos demais e, assim, reelaborá-lo mais uma vez. Era aberta a possibilidade, caso o grupo quisesse, para elementos sonoros, cenográficos e figurinos. E a rotina permanecia inalterável: um círculo no começo da aula para exporem seu processo, dúvidas, descobertas; e um círculo no final para o arremate da aula e as orientações para a aula seguinte.

Na etapa final, o grupo registrava por escrito as falas e as ações, criando textos que seriam impressos e distribuídos para toda a classe. Na penúltima aula cada cena era apresentada aos colegas, no próprio ginásio, sendo feita uma avaliação final. A última aula era dedicada à devolução dos memoriais escritos e a avaliação geral do processo. Todos os alunos, invariavelmente, haviam se emocionado ao escrever, cada um do seu jeito, as suas memórias. Todos, invariavelmente, haviam se exposto por escrito e nos jogos. Todos entravam em cena, apresentavam suas criações, avaliavam e eram avaliados com seriedade e, sobretudo, respeito.

Creio que a combinação memória da infância e jogo possa ter levado a uma quebra de resistências. O estabelecimento de um espaço relativamente anárquico – livre, mas com regras próprias – também parece ter contribuído para uma predisposição aos trabalhos. Nada era imposto, ao contrário, havia liberdade para ficar ou a deixar a aula. E o registro das memórias pode ter levado muitos daqueles alunos a se enxergarem como pessoa, portadora de uma história digna de documentação e análise. Isso não é pouco em um sistema escolar que trata da massa e não do indivíduo, diferenciado e único.

Recuperar o entusiasmo e a disposição infantis e, como adultos, levantar a pele dos jogos tradicionais para observarem a si mesmos e ao mundo, levou à criação de cenas inesquecíveis. Elas estão registradas, no papel, para quem quiser lembrar, conhecer ou encenar novamente.

BIBLIOGRAFIA

KRUGLI, Ilo.  Arte-educação: ética e estética. In: Comunicação e educação. São Paulo, (14): p. 53-55, jan/abr 1999
SPOLIN, Viola.  Improvisação para o teatro.  São Paulo : Perspectiva, 2001.


(Artigo publicado nos Anais do V Congresso da ABRACE, 2010)

Materiais derivados desse artigo:
http://pibidteatroufpel.blogspot.com.br/2012/12/sintese-artigo-partir-de-jogos.html#more





[1] Questionados sobre dança; teatro de rua; teatro de bonecos; performances em feiras, bienais, hospitais e outros, alguns alunos demonstravam surpresa num primeiro momento, ao ver essas manifestações relacionadas todas às Artes Cênicas.
[2] O conteúdo do 1º semestre abordava jogos tradicionais, primeiros contatos com os jogos teatrais de Viola Spolin, noções de dramaturgia e da linguagem teatral em geral. Paralelamente aos estudos em sala, propunha-se a leitura de textos teóricos (vide bibliografia) e a freqüência a espetáculos em cartaz.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Fazer para aprender: a experiência dos ateliês de escrita dramática em língua francesa



Para visualização em pdf acessar:

http://www.slideshare.net/adelianicolete/fazer-para-aprender




Dado o interesse cada vez mais intenso no Brasil por cursos e oficinas de dramaturgia, este artigo apresenta um levantamento de algumas experiências com os chamados ateliês de escrita dramática em língua francesa.  Com base em relatos de condutores de ateliês tais como Daniel Lemahieu, Michel Vinaver, Eric Durnez e Jean-Pierre Sarrazac, será feito um apanhado, ainda que mínimo, de objetivos e condutas com vistas à pesquisa de uma pedagogia da dramaturgia.


            A cada ano aumenta a demanda por cursos e oficinas de formação ou aperfeiçoamento em dramaturgia.[1] Por isso consideramos importante compartilhar nossa pesquisa dos ateliês de escrita dramática em língua francesa com vistas a contribuir para o desenvolvimento de uma pedagogia que atenda às nossas expectativas e também às de um teatro no presente, como considera Jean-Pierre Sarrazac.

            A tradição literária na França mantem vivo o desejo de expressão na linguagem escrita, e dá suporte aos mais diversos tipos de ateliês. Os de escrita dramática são fruto dos movimentos da contracultura na França, quando a soberania do texto foi questionada e o dramaturgo migrou do gabinete para a sala de ensaio. Muitos deles financiados pelo poder público, hoje os ateliês estão presentes inclusive nas universidades e têm à frente um grande número dramaturgos atuantes. Michel Vinaver, Jean-Pierre Sarrazac, Daniel Lemahieu, Eric Durnez são alguns desses profissionais, cuja bibliografia alimenta esta exposição. Eles atuam de forma semelhante, variando apenas em alguns detalhes e de acordo com o público que atendem: dramaturgos iniciantes, já atuantes, ou pessoas que gostam de escrever, independentemente da área em que atuam.
           
Fazer para aprender

            Em seus mais de quarenta anos de existência, os ateliês tem procurado se aproximar das tendências contemporâneas em dramaturgia, afastando-se, com isso, de uma pedagogia nos moldes tradicionais. Segundo Lemahieu, a pedagogia baseada nos cânones e em textos clássicos pode intimidar os escrevedores em vez de estimulá-los, principalmente quando o estudo é feito de maneira normativa. Por isso o condutor de ateliê considera-se um “partejador” de textos e não um professor de dramaturgia. Seu papel é estimular a busca de cada um pelo próprio caminho, pela própria voz, promovendo exercícios que resultem em diversos tipos de escrita, livres de modelos e sempre a partir da prática, donde a máxima “fazer para aprender e não aprender para fazer” (LEMAHIEU, 1992,p. 61).

            As sessões semanais ou quinzenais, em geral em torno de doze, tem de três a quatro horas de duração e se estruturam geralmente em três blocos: proposição, escrita e análise. Na primeira parte dá-se aos doze a quinze participantes o estímulo à escrita. Sarrazac propõe releituras de provérbios e parábolas, mitos e tragédias, por exemplo. Vinaver e Durnez sorteiam personagens, lugares e objetos que devem ser utilizados em um texto. Durnez propõe também improvisações escritas em duplas ou trios, diálogos elaborados “no escuro” por todo o grupo (cada um escreve uma réplica, sem conhecer a anterior), delimita número de palavras para cada frase, sorteia fotos, relações entre personagens. Nessa etapa são colocados também os delimitadores:  tamanho do texto, tempo de escrita, número de réplicas e personagens, etc. Há um sem número de recursos a serem usados ou mesmo criados, o importante é que guardem um caráter lúdico - o que predispõe o participante ao jogo, ao risco e à experimentação, além de favorecer a aceitação futura de uma escrita mais limitada por regras. A par com o lúdico está a clareza. Segundo Lemahieu (1992), as proposições devem ser tão precisas e detalhadas que permitam ao participante até mesmo desobedecer as regras.

            Das propostas iniciais surgem textos breves, escritos em sala na segunda parte do encontro. Podem configurar-se como “teatro processo, teatro documentário, dramaturgia da constatação e do cotidiano, jogo de sonho, parábola, narrativa de vida, melodrama, tragédia, e até entrada de palhaços – e outras formas de tal modo inéditas, que não sei verdadeiramente nomeá-las” comenta Sarrazac, irmanado por Durnez, indicando “a extrema diversidade das 'formas-desvios' possíveis no teatro contemporâneo” (SARRAZAC, 2005, p. 212).
           
Um exercício de escuta

            Na terceira parte da sessão cada um tem asseguradas a leitura de seu texto e a apreciação crítica por parte dos colegas, mesmo em cursos de iniciação. No dizer de Maria Lúcia Pupo, cria-se um “contexto de trocas interindividuais nos quais o processo que leva à escrita é explicitado”, colocando às claras um domínio antes tido como estritamente individual (PUPO, 2005). O autor pode ler ele mesmo ou ouvir seu texto na voz do outro. Pode igualmente falar sobre o processo, os desejos e problemas que identifica no próprio trabalho. Em seguida fala o grupo. São questionamentos, comentários, sugestões, nunca julgamentos.

            Para Vinaver (1992) trata-se de um exercício de escuta – complementar ao da escrita – que permite ao dramaturgo-aprendiz sair do próprio universo e se dirigir ao do outro, rompendo a solidão do ato da escrita, solidificando as relações grupais. Além do que uma observação feita acerca de um texto pode ecoar nos demais e ser ainda mais produtivo que para aquele a quem foi diretamente endereçada (Durnez, 2008).

            Para quem escreve, ouvir o próprio texto enunciado por outra pessoa elucida sonoridades e ritmos, a eficiência da proposta. A análise do grupo permite identificar a distância entre o pretendido e o efetivamente alcançado. O exercício de escuta do autor é respeitar a opinião alheia, sabendo, porém, que tem autonomia para acatá-la ou não. Dessa forma, criam-se condições para que se adquira uma percepção da própria escrita a fim de dominá-la, modificá-la, transformá-la (Lemahieu, 1992).

            Se algumas questões importantes não tiverem sido, o condutor comenta ou esclarece algum aspecto; atenta para poesia, metáforas, uso da língua; dá sugestões, indica leituras, remete a outros textos criados pelo grupo, reforçando a importância da reescrita, em qualquer altura do trabalho.

            De maneira geral escreve-se a analisa-se um texto a cada encontro. Vinaver prefere não ler todos, mas sortear alguns a cada sessão. Os demais, escritos com cópia, são entregues a ele, que traz anotados na sessão seguinte para a reescrita. Na quarta sessão ele pede que cada participante escolha um dos pequenos textos para desenvolver como peça maior e, a partir daí, apresente a cada semana novas versões. Outros condutores preferem trabalhar apenas com formas breves, sendo possível, porém, visualizar as condições necessárias para desenvolver textos maiores.

O lugar da teoria e o papel do acaso

            Tanto quanto a erudição a experiência profissional guia o condutor em seu trabalho. Daí a tranquilidade em adequar a teoria à prática do ateliê ou em reservar momentos de reflexão que não se enquadram nos padrões convencionais. Alguns condutores reservam um breve momento da primeira parte do encontro para discussões acerca de dramaturgia e temas correlatos. Vinaver traz trechos escritos por artistas diversos acerca de seu processo criativo, sobre o papel do acaso na arte, etc. Sarrazac lança mão de seus “tarôs dramatúrgicos”, espécies de cartas que abrigam afirmações ou provocações tais como “Ação: desde já, que tua linguagem seja ação” (SARRAZAC, 2005, p. 206). Lemahieu, por sua vez, expõe logo no primeiro encontro regras de escrita que ele mesmo desenvolveu ao longo da carreira. A de número três, por exemplo, aconselha que a estrutura seja aberta, com réplicas suficientemente claras a ponto de dispensar as rubricas (LEMAHIEU, 1992, p. 53).

            Na maioria dos casos, porém, o próprio texto analisado é que vai suscitar as reflexões teóricas. Durnez tem “na manga” uma série de peças que disponibiliza aos participantes ao notar semelhança entre seus textos e de autores consagrados. Sarrazac prefere peças curtas e contemporâneas, a serem tomada como referência e nunca como modelo.

            Junto do conhecimento e da experiência do condutor encontra-se o acaso. Não se formula rigorosamente um plano de trabalho, uma progressão exata - depende-se do ritmo da turma, do nível de resposta às proposições, do rumo tomado pelos escritos. Durnez recomenda aos participantes que não fechem demasiadamente a estrutura de seus textos, que deem espaço para soluções inusitadas, para reações e rumos imprevistos. Acaso e combinações aleatórias – provocadas pelos sorteios ou pelas sugestões de outrem, por exemplo – podem ser fonte de uma matéria-prima não convencional, instigante para a escrita (PUPO, 2005).

           Ao final do ateliê tem-se uma série de formas curtas que podem ser levadas a público. Sarrazac sugere uma montagem em torno de temas decididos pelo grupo, onde são lidos textos de um ou mais escrevedores, ou do conjunto deles. Vinaver reserva um domingo inteiro para a leitura das peças. Convida diretores e atores para “montar” e criticar os textos e, algumas vezes, chega a publicá-los pela universidade.

           Em todo caso, o objetivo dos ateliês não é a formação de escritores. No dizer de Sarrazac

“Se o participante já é escritor, a oficina é suscetível de fortificar seu trabalho de escrita. Se ele não é escritor e se jamais vier a sê-lo, pelo menos ele terá sido, durante o tempo do exercício, autor de uma ou de várias peças. Experiência que o tornará, certamente melhor leitor, melhor espectador, melhor 'compreendedor' do teatro contemporâneo.” (SARRAZAC, 2005)

            Nosso trabalho tem demonstrado que muitos daqueles que se interessam por um curso de formação em dramaturgia vem de experiências anteriores, principalmente como atores. Uma boa parte não é frequentador assíduo de teatro, nem leitor de peças, portanto, a “simples” vontade de escrever vem antes de qualquer interesse em montagem ou sucesso. O ateliê torna-se, então, um espaço em que “a conexão entre o desejo de escrever e o imaginário é facilitado, e a porção emuladora do próprio grupo ajuda cada um a assumir os riscos, a fazer tentativas” (DURNEZ, 2008, p. 7) – e, quem sabe, a predispor o autor a trabalhar também junto da cena. Ao condutor cabe oferecer condições para que o participante forje suas próprias ferramentas, das quais poderá lançar mão no futuro. Afinal, como diz Durnez à mesma página, “É quando se termina [o ateliê] que se começa”.

Bibliografia

DURNEZ, Eric.  Ecritures dramatiques: pratiques d'atelier.  Belgique : Lansman, 2008.

LEMAHIEU, Daniel. Faire faire la poésie dramatique. Revue d'etudes théâtrales, Louvain-la-Neuve, Belgique, n.1, p. 51- 62, 1992. “Théâtre et université”.

______ (Org.) Ateliers d'écriture dramatique . Théâtre/Public, Gennevilliers, mai-juin 1991, nº 99, pp.22-58.

PUPO, Maria Lúcia de Souza Barros.  Entre o Mediterrâneo e o Atlântico : uma aventura teatral.  São Paulo : Perspectiva, 2005.

SARRAZAC, Jean Pierre.  A oficina de escrita dramática. Trad. de C. dos S. Rocha.  Educação e realidade. Rio Grande do Sul, v. 30, n. 2, p. 203-215, jul-dez 2005.

VINAVER, Michel. Ateliers d'écriture théâtrale à Paris III e VIII. Revue d'etudes théâtrales, Louvain-la-Neuve, Belgique, n.1, p. 43-50, 1992. “Théâtre et université”.



Adélia Nicolete


(Publicado anteriormente nos Anais do VI Congresso da ABRACE 2010)







[1]   Essa informação se refere ao contexto paulista, embora haja, sim, um aumento de demanda e, consequentemente, de cursos, em outros estados.