Nosso
mestrado, sob orientação da Profª Sílvia Fernandes, abordou a dramaturgia em
processo colaborativo. Consideramos que o dramaturgo que atua junto da cena,
compartilhando com os demais artistas a criação do texto (mesmo quando ele não
é verbalizado) seria herdeiro tanto das práticas da criação coletiva quanto das
funções do dramaturgista –
responsável por pesquisas, proposição de reflexões, adaptação ou transcriação
de textos já existentes, acompanhamento de ensaios, escrita de diversas versões
até a definição do texto “final”.
No projeto de doutorado, sob
orientação da Profª Maria Lúcia Pupo, nos deparamos novamente com o tema da
dramaturgia contemporânea. E ao tomarmos contato com o livro Qu'est-ce que
la dramaturgie?, verificamos que, segundo seu autor, Joseph Danan, o
espectro da dramaturgia enquanto função se ampliou, abarcando, inclusive, o
trabalho de dramaturgismo.
Objetivamos, nos limites deste artigo,
apresentar algumas das reflexões de Danan, com vistas a nutrir a discussão do
tema no contexto brasileiro: a dramaturgia como escrita e como passagem para a
cena.
Dualidade
fecunda e significativa
Depois de fazer um levantamento das
diversas definições de dramaturgia ao longo do tempo, Danan propõe dois
sentidos básicos para o termo, que se ramificam e interagem permanentemente. O
primeiro deles se refere à função do autor dramático, dramatiker,
em alemão. É a noção mais convencional e, sob alguns aspectos, mais limitada do
termo.
O segundo sentido se refere à função do
dramaturgista, dramaturg, em alemão. Aquele que não é o autor do
texto dramático, mas que desempenha uma série de atividades que efetivamente
envolvem a dramaturgia.
Danan avisa que não são as máscaras
(personas) do autor dramático e do dramaturgista que interessam, “mas a função
nomeada dramaturgia que elas encarnam, assim como a carga teórica e prática
desta noção” (DANAN, 2010, p. 6). Temos,
portanto, uma primeira reflexão a respeito de nosso tema: a noção de
dramaturgia que se amplia da criação individual de uma peça de teatro (sentido
1), com toda a pesquisa que tal atividade implica, para o trabalho junto da
cena (sentido 2). Para Danan o dramaturgista desempenha a função dramaturgia,
tanto quanto o autor dramático e, como veremos adiante, toda a equipe.
No Brasil, porém, embora recorramos
esporadicamente ao trabalho do dramaturgista desde os anos 1980, sua função, por aqui, ainda não tem o status
da do dramaturgo. É o que podemos notar no depoimento de Cacá Brandão,
dramaturgista do Grupo Galpão, de Belo Horizonte:
“Se na Alemanha, onde sua figura surgiu, ele tem um dos
mais altos cachês e, junto com o diretor, é quem começa e vai definindo a peça,
aqui ele é pouco veiculado na mídia e aparece mais como figura acessória aos
olhos do próprio meio teatral e, por consequência, do público. Costumam
apresentá-lo apenas como criador de alguns textos. Só o grupo sente, mais do
que sabe, o que ele significa.” (BRANDÃO, 1993, p. 22)
Notamos
que, na maioria das montagens brasileiras, a equipe divide as múltiplas tarefas
do dramaturgista: pesquisa de campo e teórica; seminários temáticos; escolha e
estudo do texto a ser representando; possíveis transcriações e junções de
textos teatrais ou de gêneros diversos, e muito mais. Esse expediente se dá
seja seja por falta de verba para a
adoção de mais um colaborador, seja por falta de alguém capacitado para tal
função, ou por simples ignorância a respeito do dramaturgismo. Nesses casos,
para Danan, o grupo todo está encarregado da dramaturgia.
G.
E. Lessing e Bernard Dort
Ao ampliar a noção de dramaturgia
abarcando também o dramaturgismo, Danan toma como referências, entre outros,
G.E. Lessing (1729-1781), em sua Dramaturgia de Hamburgo,
e Bernard Dort (1929-1994), principalmente no que se refere à emancipação da
representação e ao estado de espírito dramatúrgico.
Pouco conhecida entre nós, a Dramaturgia
de Hamburgo é uma compilação de críticas e reflexões escritas por Lessing
no dia-a-dia de seu trabalho no Teatro Nacional de Hamburgo, entre 1767 e 1768.
São registros de processos, abarcando a escolha dos textos e seu estudo, a
interpretação dos atores, o trabalho da direção, a crítica das montagens. A
escolha de Dramaturgia para o título da obra é sintomático, pois além de
permitir novos sentidos para o termo, trazia uma intenção política: fundamentar
um teatro verdadeiramente alemão, que pudesse se libertar das normas do
classicismo - mais aristotélico que Aristóteles, segundo o crítico. Inferimos
daí que é também dramaturgia fundamentar um pensamento teatral, um modo
de abordar os textos - dramáticos ou teóricos - que seja próprio de determinado
contexto.
Para Danan, dramaturgia é o nome da parte
imaterial de um espetáculo, é o pensamento que atravessa a encenação,
que a trabalha e se constitui através dela, no cadinho de sua materialidade
(DANAN, 2010). É pertinente pensar, então, que, sob certo aspecto, pode-se
fazer dramaturgia nacional a partir de um texto estrangeiro. O exemplo vem do
próprio TNH. Embora não tenha havido tempo para a criação de peças nacionais no
curto período em que atuou, Lessing colaborou colocando-se não como um autor
dramático, mas um terceiro homem, intercessor entre o autor e o
ator. Promoveu um estudo livre de amarras normativas – leia-se francesas, já
que, para ele, as regras não valem por si mesmas, e nem se deve respeitar
cegamente as prescrições (rubricas) do autor. As regras valem por sua “dimensão
estética e dramatúrgica e, finalmente, sua eficiência”. Ao abordar a eficiência
de um texto, o crítico incluía a encenação e o espectador em suas
considerações. Incluía a recepção, e “o vai-vem, o entrançamento que se
opera sem cessar entre o texto e a representação”, entre a obra e o público daquele tempo e daquele lugar. (Idem, p. 14).
Hoje,
boa parte do trabalho que Lessing desempenhava como dramaturgista é cada vez
mais assumido pelo dramaturgo e pela equipe. Notamos que a preocupação com a
eficiência de um texto (dramático ou cênico) está presente desde o
início dos trabalhos. Na medida em que cenas são criadas, elas são exibidas –
primeiro para o próprio grupo, depois em ensaios abertos – avaliadas,
reformuladas, até atingirem uma forma que satisfaça, ainda que provisoriamente,
os criadores.
À
primeira vista, pode parecer que as notas publicadas por Lessing sobre os
espetáculos atinham-se a uma análise da peça como texto escrito. O conceito de
encenação ainda não existia, havia, sim, “um efeito de transparência que fazia
com que se visse na cena o que se via na peça escrita”. Às vezes aflorava nas
análises “a crítica moderna da representação; não ainda escolhas de encenação,
mas frequentemente, modos de atuação, de interpretação dos atores, onde poderia
ser entrevista uma encenação ainda em gestação” (Idem). Para Danan, a Dramaturgia de Hamburgo prenuncia o
nascimento da encenação, seu desenvolvimento ao longo do século 20, e as fricções
entre texto e cena que obrigarão a repensar a própria noção de dramaturgia
– temas caros a Bernard Dort.
A dramaturgia, concebida como uma
atividade que se distingue ao mesmo tempo da escrita e da encenação é, para
Dort, um estado de espírito, uma prática transversal, possível
apenas com a emancipação da representação. Para ele,
“O advento do encenador e a compreensão da representação como lugar
próprio da significação (não como tradução ou consecução de um texto)
constituíram apenas uma primeira fase [de transformações]. Constata-se hoje uma
emancipação progressiva dos elementos da representação e podemos verificar uma
mudança em sua estrutura: a renúncia a uma unidade orgânica prescrita a priori e o reconhecimento
do fato teatral como polifonia significante, aberta ao espectador.” (DORT,
1988, p. 178)
Com
isso, a representação não postula mais uma fusão ou uma união das artes - como pretendiam Richard Wagner (1813-1883) ou
E. Gordon Craig (1872-1966) - e o texto não é mais o centro de gravidade da
criação teatral. Ocorre, portanto, uma relativa independência dos
elementos, a partir de sua equivalência: não só o texto é emissor de
sentido, mas também a luz, o espaço, o cenário, os objetos, o figurino, a
interpretação e tudo o mais. Há um discurso que percorre cada um deles,
paralelamente, o que produz, segundo Dort, um combate pelo sentido, combate em
que o espectador é, no final das contas, juiz:
“Portanto, a questão do texto e da cena
se encontra deslocado. Não se trata mais de saber o que prevalece, o texto ou a
cena. Sua análise, assim como as relações entre os componentes da cena, não
precisa ser pensado em termos de união ou subordinação. É uma competição, uma
contradição que se instaura diante de nós, espectadores. A teatralidade, então,
não é mais tão somente a “espessura de signos” de que falava Roland Barthes.
Ela é também o deslocamento desses signos, sua conjunção impossível, seu
confronto sob o olhar do espectador desta representação [que é] emancipada
[do texto dramático]. (Idem, p. 183)
Ao
retomarmos a proposta de Danan em relação aos dois sentidos básicos da
dramaturgia, verificamos que o sentido 1 estaria do lado do texto, o segundo,
mais amplo, do lado da passagem do texto à cena. No teatro contemporâneo isso
não implica mais numa ordem cronológica, pois a cena pode vir antes do texto
dramático ou de um roteiro de ações. Não implica também numa função específica
do dramaturgo ou do diretor, já que, segundo Dort, “o trabalho dramatúrgico
sobre um texto não é um trabalho para especialista, e sim para todos os
responsáveis pelo espetáculo, donde é necessário um 'estado de espírito
dramatúrgico”, “uma reflexão sobre as virtualidades” (DORT, 1986, p. 8).
O
estado de espírito dramatúrgico vem substituir o “estado de espírito
semiológico”. Este, em vez de estruturar a representação como o confronto dos
signos proposto por Dort, procura constitui-la em um sistema de signos
milimetricamente codificados, que erguem grades de leitura a fim de controlar a
construção do sentido por parte do espectador. (DANAN, 2010, p. 35). A
“reflexão sobre as virtualidades”, ao contrário, permite que os signos se
multipliquem na medida em que cada criador contribui de maneira singular para a
narrativa geral do espetáculo – imbuído que está do estado de espírito
dramatúrgico.
O trabalho de dramaturgia começa antes dos ensaios: na
pesquisa e nas proposições iniciais. Em seguida, pode se dar uma dramaturgia
de palco, em que o dramaturgo ou dramaturgista escreve a partir dos
estímulos propostos pelos demais criadores. Trata-se de “experimentações
cênicas, que o olho do dramaturgo (que difere, nessa atividade, do olho
do encenador tão somente porque não dirige o trabalho e permanece, então, mais
exterior que o 'olhar exterior' daquele) observa, analisa, seleciona, adota,
recusa” e retribui em forma de palavras - faladas e escritas (Idem, p.36). No
caso de um texto já escrito, o trabalho da equipe consiste em analisar,
comparar versões anteriores do texto e de encenações, pesquisar autor e época,
a recepção quando da primeira exibição/edição, por exemplo.
O estado de espírito dramatúrgico assumido por todos nos
ensaios foi integrado e assimilado pelo encenador a tal ponto que ele pode se
abandonar à dramaturgia em ação que se chama encenação.
Referências bibliográficas
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In: Théâtre/Public, Gennevilliers, jan-mar 2009, pp.4-8.
BRANDÃO, C. A. Leite. Romeu e Romeu e
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DORT, Bernard.
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NICOLETE,
Adélia. Ateliês de dramaturgia: práticas de escrita a partir da integração artes visuais-texto-cena. 2013. Tese (Doutorado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
______. Da cena ao texto : dramaturgia em processo colaborativo. 2005.
Dissertação
(Mestrado em Artes) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São
Paulo.
Artigo publicado originalmente nos Anais da VI Reunião Científica da ABRACE - 2011
Para visualização em pdf, acessar:
http://www.portalabrace.org/vireuniao/pedagogia/1.%20Adelia_Nicolete.pdf
http://www.portalabrace.org/vireuniao/pedagogia/1.%20Adelia_Nicolete.pdf